Um massacre permanente

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Quem é o português que não sabe que em Portugal, no nosso querido SNS, há falta de médicos de família? Que não sabe que, em demasiadas Urgências hospitalares, os tempos de espera ultrapassam o razoável? Que não sabe também, que, por falta de recursos humanos, também a Urgência Obstétrica está deficiente?

O que os portugueses podem não saber com clareza são as razões para isso acontecer. Porque em vez de se fazer uma discussão séria sobre estes problemas, tentando perceber as causas, os nossos políticos preferem acusar-se mutuamente, responsabilizando sempre os seus adversários pelos problemas existentes. Infelizmente é isso que sempre acontece, discutir os graves problemas do nosso SNS, numa lógica de luta ideológica e mesquinhamente partidária.

Os media não ajudam: as aberturas de telejornais massacram os portugueses com os problemas que todos já sabem que existem, como se isso ajudasse alguém a ter esperança na sua resolução.

Sou do tempo em que não havia qualquer triagem nas Urgências, os potenciais doentes eram todos atendidos por ordem de chegada, a dor de dentes insuportável à procura de um analgésico eficaz era tão prioritária como uma dor no peito suspeita de enfarto.

Muito se progrediu e muito se avançou nas possibilidades de a medicina poder ser útil e salvadora. Cheguei a levar ao colo uma jovem mulher em choque hemorrágico directamente do balcão de atendimento para o bloco operatório, onde a doente já foi despida na marquesa cirúrgica, enquanto eu me desinfectava e chamava por ajudantes. Hoje essa mesma doente seria triada com a pulseira mais urgente, e tenho a certeza de que chegaria ao bloco a tempo. E resolvido o seu problema de ruptura de gravidez ectópica, não seria notícia de abertura de telejornal. Como centenas de doentes são salvos todos os dias nas nossas urgências.

Claro que as triagens não são completamente infalíveis: um doente com uma leve dor no peito e que recebe uma pulseira não-prioritária, pode de repente ver agravada essa dor e ter um enfarto mortal na sala de espera. Esse é logo notícia e apresentado como uma grave negligência dos serviços.

Mais do que noticiar diariamente problemas que sabemos existirem, temos de saber viver com essas limitações. Mais do que estar diariamente a noticiar os tempos de espera das pulseiras amarelas, temos de tentar melhorar e diminuir esses tempos, sabendo que as culpas não são de agora, são de décadas, e são de muitos.

Quando foi criado o SNS, a procura das Urgências era enorme e não havia falta de médicos nas Urgências, mas as esperas já eram enormes. Não havia Urgências privadas, tal como hoje existem, com esperas também enormes para doenças menos graves e sem especialistas em presença física - os únicos locais a que se podia recorrer era aos hospitais públicos.

Mas os portugueses têm de ser informados: para traumatismos graves, resultantes de acidentes, e para doenças súbitas e graves, que exigem equipas diferenciadas e multidisciplinares em presença física, não temos alternativa, temos de recorrer ao SNS, temos de procurar os nossos bem equipados hospitais públicos.

Ter muito dinheiro e ter bons seguros de saúde não garante a nenhum português assistência eficaz nos privados, face a uma doença aguda ou a um traumatismo muito grave. Por isso é do interesse de todos acarinhar e salvaguardar a maior conquista do 25 de Abril, o nosso querido SNS.

A discussão do problema do Sistema de Saúde em Portugal, e do que temos de fazer agora e para o futuro, tem forçosamente de ser feita fora da lógica das lutas partidárias e ideológicas. Um pequeno exemplo, a falta de médicos não é de agora, e muitas responsabilidades devem ser atribuídas a uma Ordem dos Médicos que durante anos foi cúmplice de vários Governos na defesa corporativa dos numerus clausus absurdos. A maneira como os privados podem vir buscar sem quaisquer limitações médicos especialistas formados no SNS, apenas com ofertas salariais irrecusáveis é imoral. Mas são as realidades que temos, e é face a elas que temos de arranjar soluções.

Hoje todos criticam, mas poucos estão verdadeiramente empenhados em arranjar soluções. Soluções forçosamente paliativas e urgentes de momento, soluções estruturais e curativas para o futuro. Não nos massacrem a toda a hora com as dificuldades actuais, que todos sabemos existirem, o SNS não merece ser tão atacado, vilipendiado e desprestigiado. Ele é muito mais do que Urgências sobrelotadas e, mesmo com as grandes dificuldades e carências actuais, é dos melhores que existem.

A nossa querida democracia merece que o nosso SNS e o Sistema de Saúde sejam discutidos de forma elevada, sem demagogias e não como mera arma de arremesso político.

Cirurgião

Escreve de acordo com a antiga ortografia

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