Um lugar para a poesia
Novo é o que se dá na diferença de uma repetição alterante, sem que alguma vez seja possível fixá-lo, circunscrevê-lo. Por isso o novo é da ordem do acontecimento, que rompe a lógica da factualidade.
(Silvina Rodrigues Lopes, Literatura, defesa do atrito)
A julgar pelo que se pode ler nos nossos jornais, a poesia portuguesa contemporânea não existe porque nunca é por eles referida (“ser é ser percebido” dizia o filósofo Berkeley). Porém, não obstante o pequeno pormenor da sua inexistência, torna-se por vezes em qualquer coisa de fabulosamente genial, que de repente pode irromper em pompa e glória nas páginas dos periódicos, como Cinderela no baile do príncipe, para logo regressar à sua opaca vida clandestina, junto das suas irmãs da prosa.
Essa situação, basicamente uma total ausência de seguimento crítico do que se faz hoje em poesia por parte dos periódicos culturais (ressalve-se a persistência solitária do JL), conduziu a uma atomização e pulverização dos poetas, que publicam em pequenas editoras, vendem em pequenas livrarias e conversam entre si pela internet. Não é um tão mau destino para a poesia: as novas gerações libertaram-se da obsessão de “viver contra”, numa permanente guerra de Antigos e Modernos, que se tornou irrelevante no tempo presente. Que os poetas se dediquem hoje ao seu trabalho sobre a língua e à sua resistência à uniformização e indiferenciação da linguagem exercida pelos poderes dominantes, mais do que a se atacarem uns aos outros, parece-me a mim uma boa coisa. E a maior diversidade de vozes e de projetos enriquece sem dúvida o panorama poético. Mas o reverso da medalha é duro: não existe pura e simplesmente uma crítica que acompanhe os rumos da nossa poesia, nesta sua nova fase pluralizada, mas também pulverizada. Não há mais movimentos poéticos a proclamarem com arrogância serem eles os únicos legítimos herdeiros de uma coisa a que se chamou poesia, e isso é bom; mas não existe por outro lado (ou existe e simplesmente não é publicado) quem conte ao público da cultura em geral o que aparece, o que se faz, o que se inova (ou não) nesta área da criação.
Vem este arrazoado pessimista e negativo a propósito de uma boa iniciativa, que justamente veio fazer o que podia para nos trazer uma imagem da nossa poesia mais jovem. Eu penso, sinceramente, que justamente pela libertação da ditadura dos movimentos poéticos, os poetas desta nova geração atingiram, em poucos anos, níveis de densidade e de inquietação que eu considero acima daquilo que logrou a geração anterior. Não reduzo o grande interesse e valor das obras poéticas de um Manuel de Freitas, de um José Miguel Silva, de um Rui Pires Cabral, de um Pedro Mexia, ou (com um projeto poético diferente, mais assente num diálogo com a tradição) de um António Carlos Cortez. Mas sinto nesta novíssima geração (tão longe da minha!) uma liberdade maior e uma busca menos contida e constrangida do que possa ser a poesia.
Ora a revista de poesia Relâmpago, que herdámos de Luís Miguel Nava e que foi coordenada durante muitos anos (até à sua morte) por Gastão Cruz, decidiu organizar o seu número mais recente justamente sobre a poesia destas novíssimas gerações. A escolha dos poetas antologiados nesta revista, da responsabilidade de Fernando Pinto do Amaral e Ricardo Marques, será discutível como todas as escolhas são. Mas compensa-nos a qualidade de muita da poesia que neste número da Relâmpago se dá a ler e as leituras bem diversas que desta matéria poética fazem Fernando Pinto do Amaral e Ricardo Marques, os organizadores, juntamente com Gustavo Rubim e Rita Taborda Duarte, que avançam algumas boas hipóteses parcelares de leitura.
Leiam-nos. A poesia tem leitores, certamente, e muitos mais do que se poderia concluir da sua débil presença no espaço público. Pois o poema só se conclui verdadeiramente no seu leitor e, como dizia Éluard, o poeta é aquele que inspira, mais do que aquele que é inspirado. Por isso, leiam-nos por favor e encontrem algumas das novas vozes em que a nossa poesia se recria e renova.
Diplomata e escritor