Um filme sobre o presente
Em 1964, oficiais brasileiros simpáticos ao ideário fascista, apoiados por parte da sociedade civil, de empresários a grandes latifundiários, de radicais conservadores a fanáticos religiosos, assustados com o ímpeto reformista do presidente João Goulart, decidiram derrubar um governo democraticamente eleito, suspender o mandato dos deputados, instituir a censura e a tortura como meios de repressão e matar centenas de cidadãos com o consentimento dos EUA. O filme Ainda Estou Aqui, que ofereceu ao Brasil e à língua portuguesa o seu primeiro Oscar, é sobre esse momento do passado.
Mas tendo em conta que em 2023, oficiais brasileiros simpáticos ao ideário fascista, apoiados por parte da sociedade civil, de empresários a grandes latifundiários, de radicais conservadores a fanáticos religiosos, assustados com o ímpeto reformista que o recém eleito Lula da Silva seguramente imprimiria, decidiram derrubar um governo democraticamente eleito, executar o presidente, o vice-presidente e o presidente do Tribunal Eleitoral para depois, provavelmente, instituir a censura e a tortura como meios de repressão, matar centenas de cidadãos e Deus saberá mais o quê, o filme Ainda Estou Aqui, que ofereceu ao Brasil e à língua portuguesa o seu primeiro Oscar, é também sobre esse momento do presente.
As diferenças entre um e outro momentos é que, em 2023, ao contrário de 1964, quando Lyndon Johnson vivia o auge da guerra fria e o pânico do comunismo, os EUA eram governados pelo moderado Joe Biden que vetaria qualquer arroubo autoritário no segundo maior país das Américas. Estivesse Donald Trump no poder, talvez o golpe passasse, este texto fosse proibido e o seu autor recambiado para Portugal.
Ainda Estou Aqui é, pois, sobre um passado presente no Brasil. Nos quatro anos de Jair Bolsonaro no Planalto, atores, como Fernanda Torres, foram tachados de comunistas, de subversivos, de preguiçosos e de parasitas porque assumiram ser contra um candidato apoiante do golpe de 1964, um fã declarado do mais notório dos torturadores do período, um deputado capaz de cuspir no busto de Rubens Paiva à frente de Eunice Paiva e demais família.
No governo Bolsonaro, o Ministério da Cultura do Brasil foi reduzido a Secretaria de Estado sob a tutela do Turismo. Pelo esvaziado cargo passaram seis cidadãos, entre os quais, Roberto Alvim, que copiou, gesto por gesto, palavra por palavra, uma comunicação de Goebbels à Alemanha nazi, e Mário Frias, intérprete da personagem Escova na novela juvenil Malhação cujo ponto alto no executivo foi a reunião com o divulgador da teoria da existência de uma cidade perdida na Amazónia, chamada Ratanabá, capital do mundo há 450 milhões de anos.
Menos de três anos depois desse pesadelo, com Ainda Estou Aqui, a Cultura brasileira ganhou um Oscar, além de mais duas nomeações, um Globo de Ouro para Fernanda Torres e dezenas de outros prémios. Para o Brasil nunca mais esquecer o passado. Nem o presente.
Jornalista, correspondente em São Paulo