Um farol de cultura portuguesa em terras do Brasil

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É admirável que a mais bela e a mais rica das instituições culturais portuguesas no Brasil tenha sido obra das nossas comunidades migrantes, que desde 1837, quinze anos apenas depois da independência, decidiram promover na então capital do Brasil um "gabinete de leitura", centro de empréstimo de livros e ao mesmo tempo lugar de encontro e de debates, a fim de promover a cultura portuguesa neste novo país independente que connosco partilhava e recriava a língua comum.

Falo do Real Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro. Mas outros gabinetes de leitura e outras iniciativas culturais dos portugueses que além Atlântico foram viver e trabalhar se multiplicaram então pelo Brasil, em Belém do Pará, no Recife ou em Salvador da Bahia, nomeadamente. Concentremo-nos, porém, sem esquecer ninguém, nesta joia esplêndida de beleza e majestade que é o Real Gabinete do Rio de Janeiro. Além de ser o monumento mais cheio de significado da nossa diáspora, ele é simultaneamente uma instituição ativa e moderna, promotora de alargados debates intelectuais luso-brasileiros e depositária de uma biblioteca fundamental para quem se debruce sobre a cultura portuguesa, por deter o privilégio do "depósito legal", que obriga os editores portugueses a enviar para lá exemplares de todas as suas publicações que tenham interesse e relevância cultural.

Foi na sequência do centenário de Camões, em 1880, e no contexto da reação patriótica nos finais do século XIX contra a decadência de Portugal no mundo moderno que a comunidade portuguesa do Rio de Janeiro decidiu construir o magnífico edifício neomanuelino onde passou a ter sede o Real Gabinete Português de Leitura, local que exalta, em todos os pormenores do seu património edificado, a narrativa das glórias portuguesas, tal com as tinha representado Camões e tal como as concebia na época a ideologia da regeneração portuguesa. E Ramalho Ortigão, no seu ceticismo patriótico, chega a pronunciar, na inauguração deste edifício, as famosas palavras que refletem toda a angústia da decadência: "E se um dia o nome de Portugal houver de desaparecer da carta política da Europa, esta Casa será ainda como a expressão monumental do cumprimento da profecia posta por Garrett na boca de Camões: ... não se acabe a Língua, o nome português na terra".

Passado mais de um século, Portugal não desapareceu da terra e o Brasil prosseguiu na criação da sua diferença e no reforço da sua identidade própria. Este alto lugar de cultura que é o Real Gabinete é hoje um elo, que se deve reforçar e valorizar, na corrente de conhecimento mútuo e de diálogo entre os nossos dois países e entre as nossas duas culturas. A colaboração empenhada da Fundação Calouste Gulbenkian e a cooperação estreita com o Estado Português, institucionalizada pelo memorando de 2017, que criou a Associação Luís de Camões, mostram todo o interesse e toda a aposta de Portugal neste farol de cultura portuguesa em terras do Brasil.

Somos hoje duas nações modernas e adultas, dois povos que fizeram os seus próprios caminhos na História e é nesse reconhecimento das nossas diferenças que devemos fundamentar a celebração de tantos laços que nos unem, de tanta História que temos em comum, desta língua que é nosso património partilhado. É digno de profundo respeito e honra-nos como portugueses que tenham sido os nossos compatriotas que vivem e trabalham naquela terra e que tanto contribuíram para a riqueza e para o progresso do Brasil a erigir o monumento de cultura que é o Real Gabinete. Um monumento que é também um centro vivo de estudos e de atividades culturais.

Os duzentos anos do Brasil confirmam a identidade específica e o percurso próprio que este grande país assumiu e percorreu. O verdadeiro diálogo só se faz no respeito pelas diferenças. Evocando o tão belo e afetivo verso de Manuel Bandeira "Portugal meu avôzinho", podemos responder-lhe com o mesmo afeto: Portugal não é avô do Brasil, acontece é que portugueses e brasileiros têm muitos avós em comum.


Diplomata e escritor

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