Um dever cívico
Há dois dias, numa cerimónia patrocinada pela Ordem dos Médicos, o meu curso festejou 50 anos de inscrição na nossa Ordem. A nossa actividade como profissionais tem o mesmo número de anos da nossa querida democracia. Fomos o primeiro curso a fazer o então criado e chamado Serviço Médico à Periferia (SMP). O nosso país, de norte a sul e nas ilhas, do litoral ao interior, viu chegar jovens médicos aos lugares mais distantes, alguns deles viram pela primeira vez clínicos nas suas terras. Muitas populações tiveram pela primeira vez serviços médicos gratuitos fornecidos pelo Estado.
Éramos muito jovens e inexperientes, aguardávamos entrar nas especialidades que escolhêramos, e com mais ou menos entusiasmo fizemos um trabalho notável. Fomos precursores do SNS. O SMP foi durante meia dúzia de anos obrigatório para todos os médicos que pretendessem depois tirar uma especialidade. Foi, quanto a mim, uma das primeiras e grandes vitórias do 25 de Abril.
Claro que nem todos cumprimos essa obrigação cívica com o mesmo entusiasmo - para todos os efeitos esse ano obrigatório atrasou a nossa entrada na especialidade, mas representou, para milhões de portugueses, um enorme avanço civilizacional. Quando regressámos do SMP pudemos escolher livremente a especialidade que pretendíamos, no meu caso concreto a especialidade de Cirurgia Geral.
Para se obter o título de especialista, nessa altura, tal como hoje, é necessário frequentar serviços públicos, pois só eles têm reunidas as condições para os formar. Uma vez criado o Serviço Nacional de Saúde, era apenas neste que se formavam especialistas. Eu fiz a minha formação na grande escola dos chamados Hospitais Civis de Lisboa (HCL), e aos 30 anos não só obtive o meu título de especialista de Cirurgia Geral como, por concurso de exigentes provas públicas, tive o privilégio de entrar nos quadros dos HCL.
Durante o meu internato recebi um salário complementado pelo pagamento de horas extraordinárias feitas na Urgência do Hospital de São José. Mas para além das horas obrigatórias realizadas pagas, muitas fiz como voluntário, sem qualquer remuneração, apenas com a intenção de poder fazer e ajudar mais algumas operações, na ânsia de poder progredir e me tornar mais competente. A compensação foi ter conseguido uma vaga vitalícia nos quadros dos HCL. E foi muito importante, mesmo com esse título já adquirido e com mais responsabilidades, ter continuado a ter quem me supervisionasse e me continuasse a apoiar e ser melhor.
Não é de um dia para o outro que um jovem especialista se pode considerar completamente autónomo e competente. Foi bom, para mim, continuar a ter o apoio dos mais velhos e experientes, a poder, de ano a ano, tornar-me mais autónomo e competente.
Hoje já não existe o SMP. Mas, hoje, esse ano obrigatório no final do curso devia ser substituído por dois anos obrigatórios no final da especialidade. Todos os jovens especialistas formados dentro do SNS, deviam ter de ficar, sem ser em exclusividade e devidamente remunerados, mais dois anos no SNS. Era bom para eles ficar ainda tutelados e supervisionados no início das suas jovens funções de especialistas, aumentando progressivamente a sua autonomia e competência, e seria uma forma de retribuírem à sociedade essa formação paga com os impostos de todos os portugueses. Só então, depois desses dois anos de exercício não-obrigatoriamente exclusivo no SNS, poderiam procurar outros empregos ou carreiras dentro ou fora do nosso país. Provavelmente muitos até prefeririam continuar no SNS, garantindo os postos de trabalho que tanta falta fazem no nosso SNS.
Tal como em 1975 se criou o SMP, necessário para dar uma cobertura médica inexistente à época a milhões de portugueses, hoje era moral e eticamente legítimo, exigir aos jovens especialistas dois anos remunerados de exercício no SNS que os formou. Uma maneira socialmente justa em benefício daqueles que têm no SNS a garantia de equidade no acesso a cuidados de saúde. Até para os privados, que hoje e sem qualquer escrúpulo, e sem quaisquer custos, vêm roubar os jovens especialistas ao SNS, esta medida era vantajosa, pois poderiam recrutar especialistas mais competentes e autónomos. E em última análise, bom para os doentes que ao recorrerem aos privados, também seriam atendidos por profissionais mais preparados e competentes.
Uma sociedade mais justa e solidária, merece da parte dos médicos que anseiam ser especialistas a aceitação deste dever cívico. Que diabo, não são os 12 anos obrigatórios que os pilotos formados na Força Aérea têm de dar, antes de poderem ir para os privados. São apenas dois anos pagos e sem exclusividade, que permitiriam ao SNS reter os especialistas que formou, e cumprir com mais qualidade e competência a sua missão.
A solidariedade e até a gratidão não se apregoam, só são sinceras quando praticadas. O que proponho não é, nem pretende ser, consensual. Nunca defendi a exclusividade no SNS, e embora um defensor intransigente deste, fiz com muito prazer e proveito alguma cirurgia privada. Sempre sabendo que para as doenças graves e complexas da minha especialidade, só as podia realizar com competência e segurança dentro do SNS. Ou melhor, dentro de um ambiente de multidisciplinaridade e fortemente hierarquizado que só a vertente pública no nosso país pode assegurar. Claro que pode haver raras excepções, que só confirmam a regra.
Resumindo: apenas dois anos obrigatórios e não-exclusivos no SNS após a conclusão da especialidade, uma vantagem profissional e um dever cívico, moral e eticamente justo.
Escreve com a antiga ortografia.