Quase tudo tem corrido bem a Kamala Harris..Não quer dizer que a ainda vice-presidente já tenha como certo que será a sucessora de Biden na Casa Branca. Mas, em pouco mais de duas semanas, parece ter construído caminho sólido para lá chegar..Desde que não cometa erros graves até novembro - e tendo em conta as limitações da mensagem de Donald Trump (eficaz nos seus fiéis, mas pouco capaz de adaptar e ceder a mensagens mais moderadas e tolerantes) -, as perspetivas de vitória sorriem neste momento a Kamala Harris..De acordo com a mais recente sondagem do Morning Consult para a Bloomberg, a sucessora de Biden na liderança do ticket disparou no Michigan (+11) e passou para a frente no Arizona (+2), Wisconsin (+2) e Nevada (+2), três Estados onde Trump liderava com grande vantagem, há apenas duas semanas..O empate na Geórgia (47/47) também gera perplexidade, se nos lembrarmos que Kamala, dias antes da desistência de Biden, aparecia a 10 pontos de Donald nesse Estado onde Biden ganhou por 11 mil votos há quatro anos, mas onde ainda na terça à noite Kamala fez um grande comício. Trump só se mantém bem na Pensilvânia (+4). Até a Carolina do Norte - onde Biden perdeu em 2020, Hillary perdeu em 2016 e até Obama perder em 2012 - passou a estar em jogo: Kamala a apenas dois pontos..A corrida presidencial mudou de agulha e o favoritismo passou a ser democrata..Herdar Biden e ir mais além.Kamala Harris está a saber herdar o essencial da Administração Biden (e isso chega para segurar a parte democrata), está a focar a mensagem nos perigos de um eventual regresso Trump e está a fazer mais: não se fica pela definição abstrata dessa ameaça e arrancou a sua campanha a marcar a oposição entre ela, procuradora e defensora da lei, e Trump, o “predador de mulheres, aldrabão e criminoso condenado”. Mais uma vez: ajuda a energizar a base, mas talvez não seja suficiente para ganhar nos Estados decisivos..Mas Kamala estará também pronta a dar um passo em frente. Na questão do Médio Oriente, por exemplo, acompanha a posição do presidente Biden de defender a segurança de Israel, empenha-se na concretização de um cessar-fogo que leve ao fim da guerra e à libertação dos reféns, mas carrega mais que Biden na necessidade de olhar para o sofrimento em Gaza..Tenta reconciliar-se com a esquerda do Partido Democrata, que é mais pró-Palestina, e critica Biden neste tema - mas, ao mesmo tempo, pode estar a preparar-se para escolher Josh Shapiro, o competente governador da Pensilvânia, um judeu crítico do Governo de Netanyahu, o que poderá contrabalançar..Trump não consegue deixar de ser Trump. E pode perder por isso.Está difícil recalibrar a mensagem para atingir a estratégia Kamala. Por esta altura, Trump estará a pensar: “Não teria sido melhor escolher Nikki Haley para vice?”.Teria sido mais adequado para segurar algum voto feminino e para contrabalançar com o discurso populista e radical. Agora é tarde. Ou não será? Tentará Trump em desespero ainda fazer esse golpe de teatro e colocar Nikki no ticket, para recuperar mulheres e moderados?.Para os republicanos, o dilema permanecerá: seguir a via extremista no tom contra as minorias e os woke, ou tentar corrigir a tempo de recentrar o discurso?.A ideia de que Donald Trump seria agora um homem diferente, talvez mudado pelo que lhe aconteceu em Butler, Pensilvânia, numa suposta redenção moral perante o facto de ter escapado por milímetros à morte ou à incapacitação é, convenhamos, apenas ridícula. Dá jeito ao candidato republicano para explorar a ideia, junto da sua base, de que terá sido salvo “por Deus”, porque será “o escolhido”, um predestinado divino para defender o povo perante a elite corrupta. Sejamos realistas: Trump continua a ser Trump. Não está mais moderado..O que Donald disse a apoiantes evangélicos na Florida (“Vamos ter tudo tão bem arranjado que não vão ter de votar novamente”) aponta para o que, objetivamente, tentou em janeiro de 2021: manter-se no poder ignorando eleições. No limite, usar o poder para acabar com as eleições..Antes da invasão do Capitólio, muitos acharam que se tratava de uma imagem, de uma alegoria. “Estava só a brincar.” Depois de 6 de janeiro de 2021, insistir em desvalorizar esse perigo é, apenas, fazer de idiota útil. Não parece muito inteligente. Trump adorava ter, nos EUA, o poder que Putin tem na Rússia ou Xi na China..O risco para a democracia, caso volte à Casa Branca, é real. Desvalorizá-lo surge como um misto de “síndrome de Estocolmo” antecipado com um excesso de otimismo imprudente. Não costuma dar bom resultado..Argumentário Kamala contra Trump.A campanha Harris tem um guião com oito ideias fortes para espalhar, de modo a destruir a campanha Trump..Quais são elas?1) Trump é um idoso de 78 anos, com registo criminal;2) Trump está associado ao Projeto 2025, da Heritage Foundation, uma espécie de guião ultraconservador para tomar conta do Estado;3) quando Trump não está a mentir, está a fazer ameaças;4) para Trump, uma lei federal a proibir o aborto é boa, a possibilidade de votar por correspondência é má;5) elogia ditadores porque gostava de ser um deles;6) ele está claramente preocupado com o facto de ter escolhido J.D. Vance para vice;7) Trump é velho e… “um bocado esquisito”;8) este tipo não devia voltar a ser presidente..Kamala já é mais popular que Trump.Antes de avançar para a sucessão de Biden no topo do ticket, Kamala Harris era uma vice-presidente apagada e acusada de não assumir mais papéis para lá da gestão falhada da Imigração. Ainda que a desaprovação não fosse acima dos 50%, a aprovação estava nos 35/38% - muito por culpa da falta de visibilidade..Enquanto isso, embora Trump tivesse desaprovação superior (55%/58%), a sua base fiel e mobilizada tem andado sempre pelos 44 a 47%..Ora, nos últimos dias, Kamala manteve a desaprovação próxima dos 50% mas subiu cerca de dez pontos na taxa de aprovação, o que a leva a estar agora com um índice de popularidade melhor que o de Trump. Geralmente, esse é um bom barómetro para saber quem ganha..Chamada virtual inédita para confirmar consenso Kamala.O prazo para apresentar candidaturas terminou a 30 de julho, pelo que Kamala Harris é mesmo a única pretendente à nomeação presidencial democrata de 2024. Tudo indica que receberá uma percentagem próxima dos 100% dos 4700 delegados. A votação decorrerá através de boletins eletrónicos até às 18.00 horas de Washington DC (23.00 em Lisboa) de segunda-feira. Se algum delegado votar noutro nome que não o de Kamala, o voto contará como presente..A candidatura Kamala submeteu as assinaturas de 3923 delegados, tendo já assim a garantia de 84% do total da convenção. Quem quisesse desafiar Kamala precisava de pelo menos 300 delegados - o que manifestamente não será o caso..Este processo inédito decorre do prazo imposto pelo Etado do Ohio para colocar o nome do candidato democrata nos boletins de voto, 7 de agosto, ou seja 12 dias antes do arranque da Convenção de Chicago.