Um censor distraído

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Voltei a ouvir há dias Jô Soares a dizer o Fado Falado, recordando a memória de João Villaret. É emocionante lembrar uma peça fundamental da arte de dizer, com a associação de dois nomes maiores da nossa língua. A letra e a música são de Aníbal Nazaré e Nelson de Barros e o idioma, dito pela melhor sensibilidade dos dois lados do Atlântico, tem um sabor especial com o tom adocicado ou com a consonância europeia. “Uma história bem singela / Bairro antigo, uma viela / Um marinheiro gingão / E a Emília cigarreira / Que ainda tinha mais virtude / Que a própria Rosa Maria / em dia de procissão / Da Senhora da Saúde…

E lembramo-nos de como Manoel de Oliveira fez Palavra e Utopia, pondo a representar o Padre António Vieira, Imperador da Língua, Luís Miguel Cintra e Lima Duarte, numa síntese perfeita de uma língua global.

Jô Soares lembrava Nicolau Breyner, que o convidou a interpretar Villaret, recriando a nossa língua comum, mas também Raul Solnado, saudoso amigo, genial intérprete, para quem o humor era parte integrante da existência. E veio-me à lembrança um extraordinário episódio que este me contou e que não resisto a relatar. E é bom recordá-lo num tempo em que a memória parece desvanecer-se quanto à liberdade e à sombra da censura.

Falo da História da Minha Ida à Guerra de 1908, um texto original do espanhol Miguel Gila, interpretada pela primeira vez na revista Bate o Pé, no Teatro Maria Vitória, em outubro de 1961. A oportunidade era significativa, estava-se no ano do início da guerra em Angola e o sucesso foi estrondoso pela subtileza e atualidade.

A censura ao espetáculo de revista era feita com a presença dos censores nos ensaios. E havia uma grande exigência nessa análise. Note-se que nos casos de Raul Solnado e Camilo de Oliveira tinha havido nessa altura a acusação da Comissão de Exame e Classificação de Espetáculos contra os dois, por acrescentarem deixas não-autorizadas. Porém, no caso da revista Bate o Pé, o número da “Guerra” não suscitou dúvidas, antes pelo contrário.

Raul fez questão de apresentar a rábula de modo rápido e sem ênfase, a ponto de, para sua surpresa, o censor ter tido a preocupação de, no final, discretamente, assinalar que, tendo grande admiração por Solnado, tinha de confessar uma coisa: aquele número estava muito longe daquilo a que ele habituara, prevendo que redundaria num tremendo fiasco, sentindo-se na necessidade de o dizer, pois tinha pena de que tal ocorresse com alguém por quem tinha tanta admiração.

O Raul contou-me a história com um íntimo gozo, já que conseguira ludibriar o censor, sabendo bem que o quadro iria, por certo, constituir um grande momento. O sucesso não se fez esperar, ultrapassando tudo o que se poderia prever, não apenas pela presença do público, mas em especial com a edição da História em disco no início de 1962, que constituiu um enorme sucesso, com repercussões que chegam aos nossos dias.

Afinal, a censura corresponde sempre a uma irracionalidade, que surge de onde menos se espera, como quando António Alçada Baptista na direção de O Tempo e o Modo se viu a braços com o corte completo da tradução do Hamlet de Sophia de Mello Breyner, apenas porque uma personagem de Shakespeare se chama Marcelo e porque então, em 1965, já se falava de Marcelo Caetano para suceder a Salazar...

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