Trump já ganhou

Kamala pode ganhar (espero que ganhe) mas o vírus trumpista contaminou o mundo. É ver as últimas semanas: dos viva la muerte que passam por “liberdade de expressão” à normalização da violência por quem, ao invés de censurar as agressões ao PM espanhol, lhe chama cobarde e tenta capitalizar politicamente uma tragédia.
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"Nós não nos apercebemos, mas durante um tempo nós legitimámos o início da violência como linguagem no espaço político. Quando nós aceitámos, ou quando algumas pessoas no espaço público com responsabilidades aceitaram, que ministros levassem com tinta verde em nome do ambiente, estávamos a permitir o início disto. (…) De uma forma muito inconsciente e até talvez subtil, foi-se permitindo que o combate político fosse travado de uma forma pouco digna, e que agora, chegados aqui, talvez seja tarde para reverter. Acho que os partidos de poder se deviam preocupar em recuperar a moderação na linguagem no debate”.

Estas palavras foram ditas a 19 de janeiro de 2024 – este ano, sim – por quem à época se apresentava como comentador. Menos de 11 meses depois, quem as proferiu é eurodeputado eleito pela AD como cabeça de lista e recém-militante do PSD. Foi enquanto tal que escreveu este domingo no Twitter/X – na sua bio ali lê-se, em inglês, “vice-coordenador EPP”, ou seja, do Partido Popular Europeu – sobre a saída, no mesmo dia, do chefe de governo espanhol, Pedro Sánchez, da localidade de Paiporta, na Comunidade Valenciana, depois de agredido (e de o carro que o transportava ter sido vandalizado): “O Rei, que não tem qualquer poder executivo, fica. Contra lama e pedras, fica. Sánchez, que ao fim de 5 dias, 217 mortos e 2 mil desaparecidos não declara estado de emergência, foge.”

Alinhada com o “chefe” da delegação do PSD em Bruxelas, a também eurodeputada Lídia Pereira quis, mais de quatro horas depois, ir mais longe, insultando Sánchez: “O que se espera de um líder em momentos de aflição é diligência, prontidão e compaixão. Nenhum dos 3 evidenciados por Sánchez. E, hoje, fugiu dos espanhóis! Uma vez mais mostra o seu carácter. É cobardia!”

Pedro Sánchez apresentado como um cobarde que fugia do povo em fúria, enquanto Filipe VI e sua mulher se mantinham, malgrado os arremessos de lama e os insultos – que, ao contrário do que muitos, em delírio monárquico, sustentam, também os visaram – na visita a uma das localidades mais martirizadas pela tempestade que assolou a zona: era essa a narrativa que vinha da direita espanhola e foi capa de jornais de direita como o ABC e o El Mundo. Uma narrativa na qual Pedro Sánchez é apresentado como o principal responsável pela falta de meios para a reação à catástrofe em Valência por não ter acionado o estado de emergência – o qual retira ao governo autonómico o controlo da ação – enquanto o presidente regional, Carlos Mázon, do Partido Popular (PP), que não pediu a declaração desse estado de emergência, passa entre os pingos da chuva.

Uma narrativa na qual, como salta à vista nos tuites de Bugalho e Pereira, não há uma vírgula de censura da violência contra Sánchez e resto da comitiva – é como se fosse merecida, “normal”, quiçá festejável (e bem houve quem a festejasse).

Se em janeiro aceitar o arremesso de tinta verde contra governantes era “legitimar a violência como linguagem no espaço político” – ideia com a qual, diga-se, concordo –, como qualificará em novembro a aceitação do lançamento de paus e pedras, agravado pelo apresentar como “cobardia” ou “fuga” quem se retira (ou é retirado) sob essas agressões?

Sim, pode-se e deve-se compreender o desespero da população enlutada que quer encontrar culpados para exorcizar a dor e a perda. Porém validar a violência, venha de quem vier, como expressão desse desespero é apenas repugnante e só pode ser lido pelo que é: a tentativa de capitalização política de uma tragédia acicatando o ódio.

É pouco provável que no PSD haja quem erga a voz contra os dois eurodeputados pelo feiíssimo gesto – afinal, não usaram palavrões como a vereadora do PP que postou um vídeo nas redes sociais a apelidar Sánchez de “hijo de puta” e “maricón” e já foi obrigada a demitir-se. Bugalho e Pereira só acusaram de “fuga” e “cobardia” um governante que foi rodeado de pessoas que lhe mandavam com coisas para cima (num cerco que pode ter sido, de acordo com algumas notícias, organizado pelo partido de extrema-direita Vox, o qual de resto já se ofereceu para patrocinar a defesa dos agressores de Sánchez caso sejam identificados e acusados pela justiça).

Escreveu, também no Twitter, o jornalista Aitor Hérnandez-Morales, do Politico Europe: “Sánchez foi retirado pela sua segurança pessoal após uma turba ter começado a lançar não apenas lama mas objetos mais pesados ao PM. (…) Que queria o eurodeputado [Bugalho] que Sánchez fizesse? Que ficasse até ser ferido? Ou só se satisfaria se ele ali permanecesse até ser seriamente magoado, ou mesmo assassinado?” E conclui: “É extraordinário que um representante daquela que é suposta ser a principal instituição democrática da Europa – e tantos outros – esteja a enviar este tipo de mensagem em vez de firmemente rejeitar a violência contra governantes eleitos. Estranhos tempos aqueles em que vivemos.”

Estranhos mas cada vez menos surpreendentes – porque aquilo de que Bugalho se queixava em janeiro, e começou muito antes dos episódios da tinta verde, com a campanha de degradação acelerada que o Chega, imitando Trump. desenvolveu cuidadosa e deliberadamente no discurso político, já triunfou.

Triunfou de tal modo que o líder parlamentar do Chega, Pedro Pinto, foi convidado a ir a uma outra TV – a CNN – logo no dia a seguir a ter dito na RTP3 que a polícia devia disparar mais a matar. Triunfou de tal modo que a comentadora Maria João Marques, verdadeiro fenómeno de cambalhotismo e dislate político, pôde afirmar na SIC-N, ante um boquiaberto Paulo Baldaia, que a polícia mandar ao chão e algemar, na ponta das shotguns, um homem negro que não tinha feito mais que conduzir o seu carro “nada teve de violência”, para, depois de a afirmação incendiar as redes sociais, ser premiada pela direção de informação da SIC-N com um convite para debater, no Expresso da Meia-Noite, a situação resultante da morte de Odair Moniz com os presidentes da Câmara de Oeiras e Sintra. O quanto mais odiento melhor é o que está a dar, é o que está a vender.

Donald Trump já ganhou mesmo que não ganhe – já mudou o mundo. De tanto olhar para o diabo, de tanto ouvir o diabo, de tanto dançar com o diabo, já somos o diabo.

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