Trump e o pensamento mágico
No dia seguinte ao das eleições americanas, enquanto tentava lidar com a hecatombe, reparei numa coisa muito curiosa. Em vários estados nos quais Trump viria a ser declarado vencedor - Flórida, Missouri, Arizona, por exemplo - as propostas de reverter legislações muito restritivas sobre aborto conquistaram uma maioria muito expressiva dos votos.
Eram 10 os estados nos quais também se decidia, a 5 de novembro, sobre interrupção de gravidez: Arizona, Colorado, Flórida, Maryland, Missouri, Montana, Nebrasca, Nevada, Nova Iorque e Dakota do Sul. Em sete deles, Trump ganhou; em oito deles, as propostas pró-escolha tiveram mais votos.
Vejamos em pormenor: no Missouri, Trump teve 58.5% dos votos (1,739 milhões) contra 40% de Kamala (1,190 milhões). Aí, a proposta 3 (Amendment 3), que declara legal o aborto até ao limite da viabilidade do feto, ganhou por 51,6% contra 48,4%. É uma vitória tanto mais importante e simbólica quando o Missouri foi o primeiro estado a usar a decisão de 2022 do Supremo Tribunal - conhecida como Dobbs - que revogou as decisões Roe e Casey, de 1973 e 1992 (as quais garantiam um direito constitucional ao aborto), para interditar a interrupção da gravidez em praticamente todas as circunstâncias. Com mais de seis milhões de habitantes, o Missouri contabilizou entre junho de 2022 e julho de 2024 apenas 74 abortos.
No Nevada, Trump venceu com 50,6% contra 47,5%, mas venceu também a proposta de colocar o direito ao aborto na constituição do estado, por 64.3% contra 35,7%. No Arizona, Trump conquistou 52,2% dos votos (contra 46,7% de Kamala), mas a proposta de integrar, como direito fundamental, o direito ao aborto na constituição saiu vitoriosa, com 61,6% contra 38,4%. No Montana, um dos estados mais rurais dos EUA, Trump teve 58,1% e Kamala 38,3; porém 57,6% dos montaneses escolheram colocar na constituição o direito a “tomar e a concretizar decisões sobre a própria gravidez”, incluindo o direito a abortar até à viabilidade do feto, ou após a viabilidade para proteger o direito à vida da mulher.
Finalmente, na Flórida, onde o candidato republicano averbou uma vitória mais de 13 pontos percentuais acima da adversária - 56% contra 42,9% -, 57,2% dos votantes exprimiram a sua vontade de revogar o limite de seis semanas para a interrupção de gravidez que vigora no estado (tornando o aborto virtualmente impossível). O facto de a Flórida exigir uma votação de 60% para mudanças na constituição mantém, no entanto, aquela lei em vigor.
Nos outros estados onde a legislação pró-escolha averbou vitórias, Kamala ganhou - Colorado, Maryland, Nova Iorque. Em sentido contrário surgem Dakota do Sul e Nebraska: Trump ganhou e as propostas pró-escolha perderam.
Temos pois esta situação bastante surpreendente: em estados “republicanos” (como Montana, Flórida e Missouri) e que votaram massivamente em Trump, o presidente que alterou a composição do Supremo Tribunal com o objetivo - entre outros - de “derrubar” as decisões que garantiam o direito ao aborto a nível federal, os eleitores votaram também massivamente para garantir esse direito. O que poderá então ser interpretado como voto pelas mulheres - numa eleição na qual havia uma mulher candidata, na qual escolheram não votar.
Da perplexidade perante isso fez-se eco, num artigo de opinião no New York Times a 7 de novembro, a advogada Jill Filipovic: “Como é possível que tantos votantes aprovem a legalização do aborto e ao mesmo tempo votem no homem que tornou possível criminalizar o aborto?”
Filipovic apresenta várias hipóteses de resposta para aquilo que descreve como “uma posição incoerente”. A primeira é que Trump terá conseguido baralhar o seu rasto no que ao aborto respeita - tão depressa se gaba de ter conseguido revogar Roe como assegura (fê-lo no debate com Kamala) que não tenciona aplicar uma interdição federal do aborto, como diz que vota contra a alteração da constituição na Flórida (o estado onde é eleitor) para, no dia da eleição, recusar responder às perguntas dos jornalistas sobre o seu sentido de voto. Não esquecendo que a mulher, Melania, interveio na campanha para se pronunciar pelo direito ao aborto.
Mas Filipovic também aventa que algo “muito trumpiano” pode estar subjacente à “incoerência” dos eleitores: o “I’ve got mine style of politics” (“O estilo de política ‘tenho o meu’”), que leva alguém a só se preocupar consigo e com os seus direitos, não querendo saber o que sucede aos outros - outras, neste caso. Assim, votam a favor do direito ao aborto no seu estado enquanto escolhem um presidente que agiu contra esse direito e promete retirar outros direitos a outros grupos ou pessoas - como os imigrantes por exemplo.
Um exemplo perfeito desse “I’ve got mine” foi dado numa extraordinária entrevista que vi, creio que na CNN, a uma família de mexicanos-americanos que entrou a pé nos EUA há mais de quatro décadas, tendo beneficiado da lei de 1986 que legalizou a maioria dos ilegais que haviam chegado antes de 1984. Todos - mãe, pai, filho (este já nascido nos EUA) - informaram votar Trump. Porque, explicaram, “ele diz o que pensa” e vai expulsar os imigrantes ilegais. Imigrantes ilegais que, segundo a mulher, não têm nada a ver com ela e o marido: enquanto eles entraram “para trabalhar”, os de agora são “todos criminosos”. Questionados sobre se não temem que familiares ilegais (os quais admitem existir) sejam também expulsos, abanam a cabeça: “Não, eles não estão a fazer mal nenhum”.
Esta combinação de egoísmo feroz, ausência de empatia, ilusão de privilégio e total irracionalidade permite que se vote num autocrata que não esconde a sua autocracia, o seu racismo e as suas visões fascistas - desde logo na forma como exalta a violência e como mostra desprezar todas as regras democráticas e do Estado de direito - acreditando que uma parte disso é “performativa” (uma forma de expressão “sincera” mas que, paradoxalmente, não é para levar a sério) e que ele só vai exercer essas características sobre os outros, “poupando” as “pessoas de bem” que votam nele.
É uma forma particularmente aziaga e desconcertante de pensamento mágico, esta que convida o diabo a entrar acreditando que, por ter sido convidado, ele vai tirar os sapatos e comportar-se. Num país que nasceu como democracia e nunca conheceu, no seus quase dois séculos e meio de existência, a autocracia enquanto sistema político (mesmo se não lhe faltaram as barbaridades do genocídio indígena e da escravatura), nem um acontecimento como o assalto ao Capitólio foi capaz de funcionar como aviso.
O fascínio que Trump, com a sua retórica brutal, contraditória, atrapalhada e ignara, exerce sobre a maioria dos americanos só se pode compreender no contexto de uma crença infantil na indestrubilidade da democracia e na ideia dos EUA como um lugar de exceção ao qual a história não ensina nada (se sequer há noção do que a história pode ensinar - afinal, uma das “explicações para esta vitória é também a do “desinteresse” pela política em geral e pela informação fiável em particular) e no qual tudo é cinema. Daquele em que, depois de muitos tiros, sangue, mortos e feridos, acaba tudo em bem para a família protagonista.