'Tempestade Ainda' na Europa
Entre 17 e 29 de abril de 1998 o Senado dos EUA debateu o controverso alargamento da OTAN para o Leste europeu. A partir de 1994 muitos diplomatas pressentiram que o alargamento da OTAN, contra a vontade expressa da Rússia, seria um enorme risco para a paz europeia e mundial.
O decano dos diplomatas, George F. Kennan (1904-2005), com a autoridade única da sua experiência e originalidade doutrinária, chamou-lhe um “erro fatal”. Entre 1995 e 1997 mais de 70 diplomatas escreveram a Clinton, para o dissuadir desse passo. Também académicos como Charles Kupchan e Michael Mandelbaum assinalaram riscos, em especial na Ucrânia. Em Portugal, recordo-me de um sólido ensaio de Carlos Gaspar (Análise Social, 1995), onde se considerava o alargamento da OTAN “sem um acordo paralelo com a Rússia” como potencial fonte de conflito na Ucrânia. Nesse debate do Senado distinguiu-se o senador democrata de Nova Iorque, Daniel Patrick Moynihan (1927-2003), talvez o último intelectual de renome no Congresso dos EUA. Ele afirmou: “Estamos a caminhar para dentro de históricas inimizades étnicas. Não temos noção daquilo onde nos vamos meter”. Em 1994, o senador publicara um premonitório ensaio (Pandaemonium. Ethnicity in International Politics), onde identificava, a nível global, os potenciais conflitos de raiz étnica e cultural, capazes de incendiar conflitos internacionais. Ele foi um dos 19 votos, contra uma maioria de 80 a favor da entrada na OTAN da Polónia, Hungria e Chéquia em 1999.
Lembrei-me de Moynihan ao ver a extraordinária peça do dramaturgo austríaco Peter Handke (n. 1942), Tempestade Ainda, em cena no Teatro Aberto (Lisboa). Handke (prémio Nobel da Literatura 2019) tem-se distinguido tanto pelo génio criativo, como pela coragem cívica própria dos intelectuais inconformistas: gente que arrisca pensar pela sua cabeça, correndo o risco de rumar contra a corrente (hoje muito raros no Ocidente).
Nascido numa zona rural da Caríntia, região austríaca fronteiriça da Eslovénia, Handke pertence a uma família da minoria eslovena. Como noutras obras suas, o dramaturgo realiza nesta peça uma evocação dos seus antepassados próximos, colocando-os na condição de personagens vivos e dialogantes no palco. Evoca-se a discriminação pela maioria de língua alemã, acentuada com o Anschluss de 1938, que obrigou os seus tios a dividirem-se entre a participação (e a morte) nas fileiras das tropas de Hitler, ou a resistência (e a morte) nas florestas como partisans. O pai biológico e o padrasto foram ambos soldados alemães. O que esta peça revela, com valor universal, é o sofrimento individual e familiar de seres humanos indefesos, naufragados nessa tempestade que continua. O pandemónio sangrento de uma Europa, cujas fronteiras foram e são rasgadas pelas valas comuns dos campos de batalha e de extermínio.
A guerra da Ucrânia é mais um capítulo dessa imensa tragédia, que começou com o suicídio assistido da Jugoslávia e se prolongou, desde 2014, no êxodo de milhões de refugiados, primeiro do Donbass para a Rússia, e depois de 2022 para o Ocidente. É verdade que Portugal é um dos 7 países que têm o privilégio de não sofrerem clivagens étnico-culturais internas e fronteiriças (ao lado da Dinamarca, Islândia, Japão, Luxemburgo, Holanda e Noruega). Mas isso não desculpa, antes pelo contrário, os nossos “especialistas” na atual guerra europeia de, preguiçosamente, preferirem os preconceitos, ao respeito reflexivo pela espessura da história e dos factos.
Professor universitário