Temos um apagão geral da lucidez?

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O ministro Castro Almeida, supostamente uma das pessoas mais preparadas e serenas do atual governo de Portugal, excitou o ambiente geral de preocupação ao admitir a hipótese de o corte de eletricidade em Espanha, que provocou segunda-feira um apagão elétrico em toda a Península Ibérica, ter sido provocado por um ciberataque.   

Ao mesmo tempo, nas redes sociais, corria o boato de que o corte de eletricidade ocorrera em toda a Europa e fora uma manobra do líder russo, Vladimir Putin. Até uma habitual comentadora da guerra da Ucrânia na TV, Helena Ferro Gouveia, se precipitou no “X” nessa hipótese, defendendo depois a necessidade de todos nós termos “kits” de emergência semelhantes aos que a Comissão Europeia anda a recomendar contra uma invasão russa.  

Toda a gente erra, não é essa a questão, mas o estado de espírito que está por detrás destes lapsos exemplificam como muitas pessoas com responsabilidades públicas parecem ignorar que fazer declarações incendiárias em alturas de perturbação, como a que vivemos no início desta semana, são extremamente perigosas. Não agir com prudência numa situação como aquela viola até o simples instinto de sobrevivência coletiva.  

É preciso não esquecer que estamos a passar por uma sequência de eventos que agiganta, paulatinamente, o medo generalizado já nem se sabe bem do quê: em pouco tempo tivemos uma pandemia, um confinamento prolongado, uma permanente instigação de pavores contra migrantes, vários incêndios gigantescos, inundações destruidoras, inflação, graves perturbações económicas, disputas comerciais internacionais que ameaçam atirar para a miséria milhões de pessoas, colapso de vários serviços públicos, uma guerra na Europa, o regresso da ameaça de um conflito nuclear, um genocídio na Palestina e uma nova corrida aos armamentos.   

Depois disto, o estado de espírito das populações portuguesa e europeia não pode ser sereno e um episódio como o do apagão de segunda-feira tem potencial para ser o detonador de uma grave explosão de pânico. Quem governa, como Castro Almeida, tem de estar consciente disto. E se, por acaso, alguém contribui deliberadamente para aumentar este medo coletivo no fito de alcançar um qualquer objetivo político então estamos, verdadeiramente, a encarar um potencial crime contra a população.  

Outro aspeto que me fez impressão foi o desfile de técnicos especialistas em gestão de redes elétricas (não estou agora a falar de políticos ou comentadores) que se contradisseram na TV e na rádio em resposta a perguntas simples.  

As energias alternativas estão por detrás do problema que ocorreu? Para uns “claro que sim”, para outros “obviamente que não”.   

Portugal pode ser, se necessitar, energeticamente, autónomo? Para uns “pode, sem dúvida”, para outros a simples elaboração da questão “é um disparate”.   

A reativação de centrais térmicas ou de gás aumentaria a segurança do sistema? Para uns “nem por isso” para outros “é decisiva”.   

Este tipo de incidentes pode ser prevenido? Para uns “sim, é preciso investir”, para outros “não, temos de nos habituar a viver com eles”.  

E já nem falo quando se pergunta pela relação entre os problemas técnicos e as opções políticas que levaram à privatização do sistema de distribuição de energia em Portugal, pois aí a confusão é total.  

O apagão de eletricidade de segunda-feira durou 10 horas, o que foi muito, mas exemplificou como dura há muito mais tempo um outro apagão: o do debate público minimamente lúcido e potencialmente esclarecedor.

Jornalista

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