Tecnologia e cidadania ao serviço da gestão de solos

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O Decreto-Lei n.º 117/2024 chegou quando as atenções estavam todas voltadas para as festividades natalícias. Sob o pretexto de resolver a crise habitacional, este diploma flexibiliza as regras de ordenamento do território, permitindo a reclassificação de solos rústicos em urbanos com uma rapidez inédita, mas perigosa. O problema transcende a técnica ou a burocracia, pois o que está realmente em causa é a integridade da nossa democracia e o respeito pelo território que habitamos.

Os Planos Diretores Municipais, fruto de processos participativos e consensos demorados, são atropelados por decisões que concentram o poder nos Executivos Camarários. Esta abordagem é um convite à arbitrariedade e mina os alicerces da gestão democrática do solo.

Em vez de proteger o interesse público, abre portas a valorizações especulativas que transformam solos rústicos de baixo valor em solos urbanizáveis, prontos a gerar fortunas de um dia para o outro. A desconfiança pública aumenta e com ela o descrédito nas instituições que deveriam garantir transparência.

A pressa em responder à crise habitacional serve de desculpa para medidas que comprometem o equilíbrio entre desenvolvimento e sustentabilidade. A ameaça aos solos agrícolas, à preservação ambiental e à qualidade de vida nas cidades é real

Ignoram-se os princípios do urbanismo contemporâneo, que preconizam cidades compactas, onde as pessoas possam viver, trabalhar e usufruir de serviços sem necessidade de longos deslocamentos. Este tipo de crescimento desordenado não só fragiliza o ambiente, mas também compromete o acesso a infraestruturas e serviços essenciais.

A falta de transparência é outro ponto nevrálgico deste novo regime. Decisões que reclassificam solos e alteram profundamente o ordenamento territorial são tomadas sem consultas públicas efetivas ou mecanismos que garantam a participação dos cidadãos. Num país onde a corrupção é um fantasma que ainda assombra muitos processos administrativos, este modelo reforça a desconfiança entre a sociedade civil e as instituições.

A tecnologia pode ser usada para acelerar processos e, ao mesmo tempo, promover transparência e participação. Ferramentas como o blockchain garantiriam a integridade dos registos de propriedade e das decisões territoriais, enquanto plataformas online poderiam disponibilizar mapas interativos, estudos de impacto ambiental e registos de deliberações municipais.

Sistemas de Inteligência Artificial ajudariam a identificar padrões suspeitos e simuladores digitais permitiriam que a população visualizasse o impacto de novos projetos em tempo real. Estes recursos não só tornariam o processo mais eficiente, como fortaleceriam a confiança dos cidadãos nas decisões tomadas.

Encontramos, no passado, exemplos que mostram que é possível conciliar habitação acessível com urbanismo responsável. Nos anos 50, bairros sociais como o Arco do Cego e a Encarnação foram pensados para integrar moradia e qualidade de vida. Após o 25 de Abril, as cooperativas habitacionais e programas públicos demonstraram que é possível construir habitação para quem precisa sem sacrificar solos valiosos ou ceder à especulação.

A discussão sobre o território que habitamos não é apenas uma questão técnica de curto prazo, pois se queremos um país que respeite o ambiente, promova a equidade e valorize as gerações futuras, é urgente repensar o futuro que queremos para a gestão dos solos e do urbanismo.

Especialista em governação eletrónica

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