Surpresas fingidas com as tragédias

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Quando em julho a ministra da Saúde foi chamada pelo PCP ao Parlamento para dar explicações sobre a falta de técnicos de emergência pré-hospitalar quase ninguém se surpreendeu que a ministra não se comprometesse com a resposta ao problema.

Agora, perante uma morte ocorrida num contexto que revelou de forma dramática as dificuldades de resposta do INEM, não faltou gente com responsabilidades políticas e governamentais (presentes e passadas) a mostrar-se surpreendida pela gravidade da situação e a clamar por medidas urgentes.

Este tipo de surpreendidos nunca se surpreendem quando os problemas podem ser atempadamente resolvidos. Nesses momentos, negam a dimensão dos problemas, recusam-se a reconhecer as suas causas e não querem sequer ouvir falar em soluções de políticas alternativas necessárias.

É só quando a ocorrência da tragédia já não permite esconder a realidade, nem o peso das suas responsabilidades que, então sim, se mostram surpreendidos e até dispostos a agir com urgência.

E isto não se aplica apenas à situação do INEM.

Foi assim com a morte de Odair Moniz, que revelou a circunstância de comunidades desprezadas pelas políticas seguidas e remetidas para a exclusão social, a negação de direitos sociais e condições de vida indignas. Para surpresa fingida de quem insiste nas políticas que geram esses resultados.

Já tinha sido também assim a propósito de mais uma tragédia com os incêndios, que revelou o agravamento do abandono do mundo rural, do desordenamento florestal, do desprezo pelos pequenos produtores agroflorestais e da desconsideração dos bombeiros. Também aqui, para surpresa fingida dos vários responsáveis políticos por essa situação.

Os exemplos poderiam multiplicar-se. Mas, como estamos em tempo de discussão do Orçamento do Estado, talvez seja oportuno procurar nessa discussão de hoje os surpreendidos fingidos de amanhã.

Agora que se discute um Orçamento do Estado enformado pelas novas regras da União Europeia sobre a dita “governação económica” há quem diga que a opção de aceitar essas imposições não nos é prejudicial e que, pelo contrário, nos interessa e nos defende.

Agora que é já evidente que as necessidades do país não terão resposta com a política e os interesses que estão na base deste Orçamento - e que juntam PSD, CDS, com o beneplácito do PS, da IL e do Chega, mesmo que procurem iludir esta realidade -, há quem defenda que a prioridade é o excedente orçamental ou a contenção da despesa pública.

Agora que se discutem também propostas alternativas, há quem diga que elas não fazem falta, mesmo que, entre outras coisas, se destinem a reforçar o investimento público, contratar e valorizar trabalhadores, reforçar a capacidade dos serviços públicos, canalizar verbas para a resposta a problemas sociais, o apoio aos pequenos e médios produtores, o combate às assimetrias territoriais, as medidas adequadas de prevenção e combate aos incêndios.

A assumir essas opções hoje estarão os surpreendidos fingidos de amanhã, quando tiverem, de novo, de se confrontar com as consequências trágicas das suas opções.

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