Sujidade

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O uso de uma lista de nomes estrangeiros alegadamente de crianças inscritas numa escola de Lisboa por parte de André Ventura, na Assembleia da República, significa passar para um outro nível de discurso político. Um nível de estigmatização e de maldade gratuita, que, mesmo não sendo estruturalmente distinto do revelado noutras intervenções anteriores, acentua a dimensão de vulgaridade e de aproveitamento dos instintos mais primários no discurso do Chega. Tudo feito, claro, com a boa dose de sonsice e de aparência de senso comum e de “pura realidade” que é típica do discurso populista.

Poderia André Ventura ter dado este exemplo, presumindo que possa ser verdadeiro, para ilustrar a boa integração de crianças com pais estrangeiros residentes em Portugal na escola pública portuguesa. O facto de estarem a aprender a língua e a cultura portuguesas. O facto de terem acesso a instrução provavelmente de melhor qualidade e mais consistente do que no país de origem dos seus pais, num ensino baseado na dignidade das pessoas, na igualdade entre homens e mulheres, nos valores democráticos, no respeito e defesa dos direitos fundamentais.

Poderia ter dado este exemplo dizendo que temos neste momento a oportunidade de retribuir aquilo que outros países fizeram em relação às inúmeras comunidades de portugueses que, ao longo das últimas décadas e neste momento também, vão residir para outros países. Quantas escolas em França ou no Luxemburgo não poderiam ter listas alargadas de alunos com nomes portugueses? O que sentiriam esses alunos e os seus pais ouvindo os seus nomes lidos nos parlamentos nacionais, apresentados ad hominem como exemplos de abuso e de erro?

Poderia ter feito isso, mas não o fez. Preferiu usar a identidade de crianças pequenas para acentuar divisões, aumentar estigmas, acicatar o medo. Quando André Ventura foi estudar alguns anos para uma universidade irlandesa, teria gostado de ver o seu nome lido no parlamento Irlandês por um político populista local como exemplo de “excesso” de estrangeiros? O que sentiria?

Confundir propositadamente o direito das crianças estrangeiras residentes em Portugal à educação com alterações, necessárias ou não, à lei da nacionalidade e aos requisitos legais de imigração, é demasiado sujo. Até para o Chega. E suja-nos e envergonha-nos a todos.

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

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