Somos uma soma. Não nos dividirão

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"Cada um de nós é uma soma. Tem sangue do nativo e do migrante, do europeu e do africano, do branco e do negro e de todas as outras cores humanas. Somos descendentes do escravo e do senhor que o escravizou. Filhos do pirata e do que foi roubado. Mistura daquele que punia até à morte e do misericordioso que lhe limpava as feridas”, disse-nos Lídia Jorge no seu discurso de 10 de Junho, nas comemorações dos 500 anos do nascimento de Camões.

E, parecendo que adivinhando o que aconteceria naquele mesmo dia, acrescentou: “A consciência dessa aventura antropológica talvez mitigue a fúria revisionista que nos assalta pelos extremos nos dias de hoje, um pouco por toda a parte.” Não mitigou.

Passados exatamente 30 anos do brutal assassinato de Alcindo Monteiro às mãos de um grupo de neonazis, o dia 10 de junho de 2025 foi marcado pela violência e o ódio. De manhã, o imã de Lisboa foi agredido com insultos racistas e saudações nazis durante o Encontro Nacional de Homenagem aos Combatentes. À noite, um grupo de extrema-direita fez uma “espera” à porta da companhia de teatro A Barraca e agrediu vários atores, incluindo Adérito Lopes que teve de ser hospitalizado, obrigando ao cancelamento da atuação dessa noite.

Estes episódios deste 10 de Junho não são isolados. Vêm de um crescendo do aumento da radicalização e da intimidação que está a ser tolerada no espaço público físico e online. Nos últimos anos sucederam-se interrupções de apresentações de livros, perseguições a autoras de livros infantis, perseguição e violência contra imigrantes, organização de contramanifestações racistas e xenófobas, numa tentativa clara de condicionamento, de intimidação, de opressão.

Como é que estes atos de violência não iriam acontecer quando o discurso de ódio é tolerado, quando a desinformação circula à velocidade de um clique, quando não há uma posição firme por parte de quem nos governa?

Sob o pretexto de uma “liberdade de expressão” é admitido dizer tudo, instigar o medo e explorar a diferença, o que, na verdade condiciona, sim, a liberdade de expressão e também de viver em segurança de quem é visado pelo discurso de ódio. Já dizia Karl Popper: não podemos ser tolerantes com a intolerância, sob a pena de a tolerância em si ser destruída.

Nem os sucessivos episódios de violência dos últimos anos, nem o ressurgimento de grupos com narrativas explícitas neonazistas e neofascistas, nem as sucessivas chamadas de atenção dos Relatórios de Segurança Interna sobre o aumento da radicalização online com o apelo explícito à violência têm sido suficientes para que este problema seja levado muito a sério e para que sejam tomadas medidas claras de não-tolerância ao ódio. Depois deste dia 10 de Junho, espero que tenha ficado óbvio o que já o era: é preciso desmantelar a existência destes grupos de ódio, investigar os seus financiamentos e redes, combater a radicalização online. E é preciso não tolerar o discurso de ódio, seja na rua, seja no Parlamento.

Lídia Jorge tem razão: cada um de nós é uma soma. Mas somos mais do que isso. Todos nós somos uma soma, uns com os outros. É essa a nossa força: uma comunidade diversa e unida, onde somos melhores porque somos juntos. A quem quer instigar o medo e explorar as diferenças para nos separar, dizemos: “Não nos dividirão. Somos uma soma.”

Líder parlamentar do Livre

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