Sobressalto e sobressaltos
1. O Manifesto.
Há pouco mais de dois meses, tornou-se público o Manifesto pela Reforma da Justiça e pela Defesa do Estado de Direito Democrático. Cinquenta subscritores assinalavam os 50 anos do 25 de Abril e apelavam a um sobressalto cívico.
Diziam (e dizem) que a reforma deve ser assumida como imperativa prioridade. Defendiam (e defendem) que a área em causa tem avultados recursos públicos - que comparam bem com outros países europeus - e que, no entanto, no nosso país estavam e estão em causa o respeito pelos direitos e interesses dos destinatários do Sistema de Justiça.
Afirmavam-se contra, e demarcavam-se dos, graves abusos na utilização de medidas restritivas de direitos, liberdades e garantias constitucionalmente defendidas, como as escutas telefónicas, muitas vezes inconcebivelmente prolongadas, as buscas domiciliárias como se cada alvo fosse um terrorista em potência, e não raras vezes injustificáveis, as detenções preventivas precipitadas quando não ilegais.
Insurgiam-se contra o habitual espetáculo nas intervenções do Ministério Público contra agentes políticos a par da colocação cirúrgica de notícias sobre investigações, assim formatando a opinião de que todos esses são corruptos até prova em contrário.
O Manifesto assinala que nem qualquer órgão de soberania, nem qualquer partido relevante tem mostrado vontade e coragem políticas para encetar reformas significativas na Justiça.
Atendendo a responsabilidades políticas de muitos dos signatários, isto corresponde a uma nossa forte autocrítica, pouco praticada em Portugal.
Desde o primeiro momento ficaram claras as críticas ao funcionamento e cultura de perfil corporativo que predominam no Ministério Público e à associada desresponsabilização da PGR. Sempre se reafirmou o respeito integral pela independência dos tribunais, pela autonomia do Ministério Público nesse quadro, pelas garantias de defesa judicial.
Era e é prioritário reconduzir o MP ao modelo constitucional.
Em pouco tempo, praticamente não houve dia sem ressonância do Manifesto. Não apenas pelas intervenções não-combinadas, mas convergentes, de muitos dos subscritores, mas pela vontade de muitos, que aumentaram de 50 para 150 (em breve para 200) os que dão nome e cara. Apesar da limitação de não estarem pessoalmente com funções políticas ou partidárias.
2. Sobressaltos
Fortes sobressaltos já se deram, em especial, no próprio Sistema de Justiça, nos órgãos de comunicação social, na Assembleia da República.
Uma das géneses do Manifesto foi a inconcebível situação que levou à dissolução da AR com maioria absoluta.
E assim, a golpe, se passou para uma nova situação com uma importância nunca vista da extrema-direita no ano em que se comemoram 50 anos do 25 de Abril. Golpe de Estado? Golpe institucional? Que papel para cada protagonista principal? Talvez um dia saibamos.
O processo disciplinar visando a procuradora-geral-adjunta Maria José Fernandes, que teve a coragem e o desassombro de dizer o que era óbvio e estava em causa, foi talvez a gota de água.
Quem anda ou tenta andar, em 60 anos de intervenção política, a combater a escuridão sente como muito mobilizador, fonte de novos ensinamentos e de algum entusiasmo, o que tem acontecido. Quem nos diria que estaríamos no mesmo barco e no rumo certo, com pessoas que há algumas décadas estavam no topo dos adversários?
Quem nos diria que eram possíveis e enriquecedoras as quase permanentes discussões numa rede social ou em reunião tão produtiva como os subscritores tiveram na segunda-feira, 17 de junho?
Quem nos diria que podíamos contribuir para paralisar as ações de quem tudo tentou para impedir o antigo primeiro-ministro de ser presidente do Conselho Europeu?
Quem anteciparia que depois de reuniões com Presidente da República, primeiro-ministro e secretário-geral do PS os horizontes para mudanças indispensáveis se tornassem plausíveis após o último debate parlamentar?
Do meu ponto de vista, nunca houve um movimento cívico como este. Político e multipartidário. Em redor de causas unem-se escritores, diplomatas, jovens quadros, pintores, engenheiros, médicos, cantautores, jornalistas, professores…
O sobressalto está em curso e vai continuar.
3. A reação sobressaltada.
Muita foi de natureza corporativa:
a) de alguns do MP, sempre representados por um sindicato unitário que funciona como principal porta-voz dos mudos empregadores;
b) de alguns - os habituais - de jornais e TVs que sempre foram os beneficiários dos vasos comunicantes instalados;
c) do partido da extrema-direita, que investe fortemente do ponto de vista ideológico e político nas áreas da Segurança, da Defesa e da Justiça. Na defesa de todos os corporativismos.
4. Algumas conclusões.
Neste abalo, muito se veio a saber, para além do que consta do Manifesto, sublinho apenas três pontos:
- que houve e há recursos decisivos para o Supremo Tribunal de Justiça que são apreciados por pessoas - certamente estimáveis e respeitáveis - que fizeram toda a sua carreira judicial como procuradores, nunca tendo estado antes como juízes. E a cultura dominante em cada magistratura é muito diferente. Eis uma alteração constitucional indispensável no futuro;
- que há demasiados magistrados judiciais que, embora em ambiente de cultura jurídica diferente, “assinam de cruz” as posições do MP, desde casos nos processos mais mediáticos, a casos quotidianos que desgraçam desconhecidos da opinião pública;
- os porta-vozes do costume das posições populistas e corporativistas utilizam argumentos que seriam ridículos se não fossem perigosos, rancorosos e falsos - o Manifesto seria de poderosos a defender poderosos; de influentes a defender amigos, não contém quaisquer propostas. Como se um diagnóstico tão severo e a forma como foi recebido pelo Presidente da República, primeiro-ministro e líder do principal partido da oposição não mostrasse a seriedade dos propósitos dos subscritores. Como se o intenso debate que atravessa comunicação social, magistraturas, Parlamento, não tivesse relevância.
Aliás, no contexto do Manifesto, e apesar da competência constitucional caber à AR, tem havido várias sugestões sérias:
- prazos judiciais são para cumprir;
- medidas especialmente intrusivas, como escutas, detenções ou buscas com exigência de luz verde de dois juízes e não apenas de um juiz;
- escutas só para suspeitos de crimes sujeitos a mais de cinco anos de prisão e com limites imperativos de prorrogações;
- aplicação das leis em matéria de violações do segredo de justiça;
- respeito pelos direitos das vítimas em ter justiça feita atempadamente e dos arguidos em não permanecerem indefinidamente nesta situação.
Em suma, respeito pelo Estado de Direito e pela Democracia.
Vamos esperar por compromissos sérios no Parlamento, em redor de propostas políticas e não de denominadores comuns corporativos. Sem otimismos excessivos, mas sem baixar os braços.
Gostaria de ver concretizadas propostas que, não sendo de todos os subscritores, considero muito importantes:
- a convocatória pelo PR de uma reunião do Conselho de Estado para discussão da situação na Justiça;
- a disponibilidade de quem for indigitado para PGR ser ouvido no Parlamento, embora tal não seja constitucionalmente exigido (nem vedado). A próxima pessoa a exercer tão importantes funções tem de publicamente anunciar como vai agir para pôr termo ao desprestígio institucional e à balcanização instalada.
Em 18 de novembro, na minha derradeira intervenção no PS, afirmei: “Quero dedicar a última fase da minha vida política a, modestamente, defender a causa das causas da Democracia.” E vou continuar a fazê-lo em boas e controversas companhias (como eu também serei).
Obrigado Maria de Lurdes Rodrigues, Rui Rio, Daniel Proença de Carvalho, Vital Moreira, Diogo Feio, Daniel Oliveira, Leonor Beleza, António Garcia Pereira, para apenas citar quem não é do PS e teve importantes funções partidárias ou de Estado.
PS: Na passada quinta-feira houve vários acontecimentos importantes:
- a notícia do arquivamento do processo disciplinar contra a procuradora-geral-adjunta Maria José Fernandes;
- finalmente alguém que não é dirigente do sindicato da corporação veio dar a cara: o procurador-geral-adjunto Rosário Teixeira.
No que respeita ao Manifesto, embora moderado e inteligente, insistiu em duas falsidades: que se tratava de um ataque ao Ministério Público (quando o que se pretende é o regular funcionamento dessa instituição) e que não continha propostas, apenas críticas (o que aqui já se desmontou).
Quanto à ilibação de António Costa (“não é suspeito”), pena que não tenha sido esse o parágrafo introduzido no comunicado da PGR de 7 de novembro. A democracia teria sido poupada a vexame de graves consequências.