Sobre a UE: pessimismo ou realismo?

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A União Europeia foi confrontada, durante a semana, com dois acontecimentos que não pode ignorar: o relatório de Mario Draghi e o debate entre os dois principais candidatos às presidenciais norte-americanas. Ambos terão, quer se queira quer não, um impacto significativo sobre o mandato da nova liderança europeia e o futuro desta nossa parte do mundo.

Draghi esteve à frente do Banco Central Europeu (2011-2019), e aí ganhou um prestígio enorme, sobretudo durante a chamada crise do euro. E foi primeiro-ministro de Itália (2021-2022), também numa altura de grande instabilidade no seu país. Apresentou agora, a pedido de Ursula von der Leyen, um relatório sobre o futuro da economia e da UE, sobretudo face à competição da China e dos EUA.

O documento é um calhamaço de cerca de 400 páginas. Pode ser resumido, sem exagero, numa só palavra: pessimismo. Draghi sublinha que a UE perde terreno em relação aos EUA, em termos de competitividade económica e de inovação tecnológica, desde 2000. A título de exemplo, refere que o rendimento real per capita do americano médio passou a ser nos últimos vinte anos o dobro do equivalente na Europa. Em relação à China, o distanciamento económico desfavorável à Europa está em aceleração desde o início da década passada, em sectores fundamentais e no comércio internacional.

Draghi diz-nos que é urgente mais cooperação, maior integração, mais projetos comuns e mais investimentos plurinacionais. Tudo isto sobretudo nas áreas tecnológicas, digitais, da energia – o consumidor europeu paga os recursos energéticos a preços absurdos, se comparados com os EUA – e na defesa. Acrescenta que a Comissão Europeia deve ter autoridade para emitir dívida pública comum, que financie projetos de interesse estratégico para a soberania económica e a defesa dos países membros.

De um modo geral, as recomendações fazem sentido. Mas, infelizmente, poderão não passar do papel. Vários países europeus vivem crises políticas internas complicadas, que provocam enormes fragilidades governativas. Pensemos na França, na Alemanha, nos Países Baixos, na Bélgica, em Espanha ou em Portugal, para mencionar apenas alguns casos de governação instável. Acrescentemos à lista a Áustria, a Itália, a Suécia, as tensões entre a Alemanha e a Polónia, a Eslovénia, e temos os principais traços do quadro populista que está a levar as coligações políticas para o nacionalismo extremo, contrário ao projeto comum. Num contexto assim, o relatório de Draghi parece ter como destino as prateleiras de Bruxelas e as bibliotecas especializadas. Esta é a pior altura para insistir nos interesses comuns.

Apesar de tudo, penso que há necessidade de falar disto e de outras dimensões, que Draghi achou prudente não referir. Estou de acordo quando diz que é preciso agir mal a nova Comissão Europeia entre em funções. Mas acrescentaria que é igualmente necessário ousadia e pôr os pontos nos is. Entre outros aspetos, é fundamental reforçar a capacidade do Conselho Europeu, em matéria de orientação política e de tomada de decisões segundo o princípio da maioria qualificada. Também me parece essencial transferir mais autoridade executiva para a Comissão. Na área económica, Von der Leyen e a sua nova equipa devem priorizar questões bem concretas, tais como a simplificação e a harmonização em matéria laboral, fiscal, financeira e bancária. E na competição com os EUA e a China, é preciso investir mais na inovação económica e tecnológica e menos nas questões regulatórias, nos travões, na burocracia e nas regras de valor marginal, que só dificultam a iniciativa pública e privada. E assim mudar de paradigma económico, numa Europa que tem juristas a mais e empreendedores, economistas, engenheiros, sociólogos e técnicos a menos. E a nossa noção de humanismo não pode continuar assente na criação de regalias suplementares, insustentáveis face à concorrência americana e chinesa.

Já nos EUA, o debate presidencial, que constituiu uma vitória indiscutível para Kamala Harris, pode ser resumido da seguinte forma, no que nos diz respeito: deixou claro que se Donald Trump ganhasse a eleição, ganhariam no nosso continente Vladimir Putin e Viktor Orbán, para além dos extremistas que se opõem à construção europeia. E veríamos a imposição de novas barreiras do lado americano, que tornariam mais difíceis as exportações europeias para os EUA. Draghi ficaria certamente ainda mais pessimista quanto futuro ao económico da Europa. Resta-nos fazer bem a nossa parte, e esperar que os cidadãos dos EUA, em novembro, façam a sua.

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