SNS e horas-extra
É revelador do debate político atual termos passado semanas a falar de duas medidas - alterações no IRS Jovem e uma descida de 1 a 2 pontos percentuais no IRC (o imposto sobre os lucros das empresas) - que representam, no seu conjunto, uma redução de receita fiscal do Estado de apenas umas centenas de milhões de euros. Falou-se pouco de números que deveriam preocupar muito mais os cidadãos.
A começar pela despesa com pessoal no Serviço Nacional de Saúde. O Orçamento que agora foi aprovado inscreve 7,09 mil milhões de euros só para pagar os profissionais do SNS. Um valor que é um dos maiores de sempre e que “engordou” 425 milhões em relação ao que os contribuintes estão a pagar este ano.
Com isto não estou a dizer, de todo, que os médicos, os enfermeiros e todos os outros que prestam serviço nos hospitais e centros de saúde são uns privilegiados e que deveriam receber menos. Apenas que deveríamos parar para refletir e perceber o que estamos a pagar, que é o que faz qualquer família portuguesa quando os rendimentos lá de casa não estão a chegar para pagar todas as despesas.
E para percebermos o que estamos a pagar, é preciso recorrer a outro número. Até ao final do 1.º semestre, o número de horas extraordinárias realizadas e pagas aos profissionais do SNS ascendia a 8,59 milhões. Repito: em meio ano, o SNS já tinha pagado 8,59 milhões de horas extraordinárias (a maioria a médicos), bem como outros 3 milhões de horas em prestação de serviço. Mantendo-se este ritmo, no final do ano as horas-extra custarão quase 700 milhões de euros. E estes milhões são mesmo custo, não são receita fiscal da qual o Estado abdica.
O economista Pedro Pita Barros, citado nesta edição do DN, resume em poucas palavras o que está em causa: “O pagamento de horas-extra é certamente pior do que fixar os profissionais de saúde, sobretudo quando essas horas-extra são usadas para necessidades permanentes de tempo de trabalho desses profissionais.”
Ter de recorrer, de forma permanente, a milhões de horas extraordinárias só para conseguir lidar com as tarefas correntes é a imagem de um sistema insustentável e, até melhor prova, ineficaz.
A nossa classe política tem optado por arrumar-se em duas caixas: quem critica o SNS quer acabar com ele, e quem o elogia quer apenas mantê-lo como está.
Para que o SNS tenha futuro é preciso reconhecer todos os seus méritos e virtudes, sobretudo as históricas, conseguidas ao longo de décadas de desempenho médico de excelência. Mas também o contexto difícil atual em que os seus profissionais realizam uma tarefa de grande coragem. É preciso reconhecer os seus defeitos, de organização, operacionais e estruturais, e abordá-los sem preconceitos ideológicos. Para essa tarefa não nos importaríamos de pagar uns milhões de horas-extra.
Diretor-adjunto do Diário de Notícias