Serviço doméstico remoto? Explore-se!
Lembram-se da pandemia de covid-19? Daquela conversa do “Vai ficar tudo bem?”. E da esperança de vermos nascer uma nova consciência colectiva?
As memórias desses tempos são seguramente muito diferentes para cada pessoa e família, e, embora seja uma optimista militante, ter vivido o confinamento com vista para operários da construção civil refreou a minha confiança num processo global de re-humanização.
Seriam eles trabalhadores essenciais? Na altura coloquei a questão a Deus e ao Mundo, e o coro de não-respostas e encolheres de ombros apenas confirmou mecânicas pré-covid-19: há vidas que merecem protecção, outras que nem sequer são dignas de atenção.
Por isso, era vê-los ali, dia após dia, bem coladinhos, incapazes de cumprir qualquer medida de isolamento social, de higienização de mãos e substituição de máscaras. Tudo em nome da “essencial” construção de mais uma unidade hoteleira em Lisboa, projecto entretanto inaugurado.
Nessa mesma época de tantos zelos, também dei por mim numa discussão sobre o serviço doméstico, com uma pessoa das minhas relações. Apercebi-me, na altura, em que lidávamos com a proibição de circulação entre municípios, que ela e o marido tinham sido incapazes de abdicar da mulher-a-dias, optando por ignorar os riscos a que a expunham quotidianamente.
Fosse porque se deslocava de carro e não de transportes públicos; fosse porque ela precisava de ganhar dinheiro; fosse porque eles, por inerência das suas funções, continuaram a trabalhar no escritório e, como tal, não tinham vida para tratar da lida da casa; fosse simplesmente porque podiam, as justificações eram acessórias.
A determinado momento perguntei: se estão preocupados com a subsistência da pessoa que não tem o privilégio de parar, e se a vocês esse dinheiro não faz falta (porque efectivamente não fazia e continua a não fazer), porque é que não garantem essa protecção a quem não a tem?
O problema, explicaram-me nas entrelinhas, é que nem roupa, nem louça se lavam sozinhas, o aspirador, por mais robotizado que seja, ainda precisa de alguma supervisão humana, os móveis acumulam pó, cozinha e casa de banho exigem manutenção a detergente, e, somadas as limpezas e arrumações, tudo isso dá trabalho.
À medida que as restrições foram sendo levantadas, e que o chamado “novo normal” se foi instalando - e com ele algumas confissões de incumprimento ao longo dos sucessivos confinamentos -, fui conhecendo outros casos de serviço doméstico “essencial”.
Nenhum, porém, se assemelhou àquilo que ouvi no último fim-de-semana: durante a covid-19, houve quem se tivesse socorrido de serviço doméstico remoto. Para quem, como eu, não dispõe de uma mente criativamente extractivista, exemplifico: há relatos de quem tenha feito piscinas para recolher roupas para lavar e passar, devolvendo-as devidamente tratadas; e também de quem, a partir da sua casa, tenha continuado a preparar refeições para os patrões e respectivas famílias.
O engenho, bem à medida dos que têm imunidade e impunidade de classe, está reportado no Livro Branco do Trabalho Doméstico Remunerado, elaborado no âmbito do projecto Serviço Doméstico Digno, desenvolvido pelo Sindicato dos Trabalhadores de Serviços de Portaria, Vigilância, Limpeza, Domésticas e Atividades Diversas (STAD).
As conclusões e recomendações foram apresentadas no último domingo, 2, no Parque da Quinta das Conchas, em Lisboa, marcado pela divulgação do manifesto Sonhos de uma vida melhor, iniciativa da eurodeputada pelo Bloco de Esquerda, Anabela Rodrigues, que reivindica melhores condições de trabalho para quem presta serviços domésticos.
Mais do que a defesa de direitos trabalhistas fundamentais, nomeadamente a férias pagas, Anabela posiciona-se pela visibilização, valorização e reconhecimento das mulheres que limpam e cuidam das casas e famílias de outras pessoas.
Por isso, juntou Adelina Ramos, Elisabete Mascarenhas, Maria Varela e Rosa do Rosário, e, com os seus testemunhos do lado, no mês passado apresentou esse manifesto em Estrasburgo. Fê-lo a partir de uma consciência partilhada: a de que mais do que ler as reivindicações, importa conhecer que vidas elas protegem e representam.
No próximo domingo, 9, voto também por elas, pela eleição de Anabela Rodrigues para o Parlamento Europeu. Com Sonhos de uma vida melhor para realizar.