Sem “mas”

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Tentei que este artigo se iniciasse com uma cronologia de incidentes racistas e xenófobos de 2019 até hoje, não coube. Precisaria de preencher o espaço de várias crónicas para o efeito.

Mas em linhas gerais, essa cronologia inclui um conjunto de vítimas mortais, a apropriação institucional de uma linguagem e comportamento racista, celebração do racismo e xenofobia no espaço público, ataques populares e institucionais (das forças de ordem) a imigrantes, um quotidiano de incursões militarizadas aos territórios onde habitam as pessoas racializadas, e a condenação pública e coerção sobre os denunciantes dos actos referidos.

Não sou ingénuo, já vi demasiadas pessoas vítimas de racismo para dizer que é um fenómeno português que nasce em 2019. É, aliás, a falta de trato interno do D de descolonizar de Abril de 1974, que nos fez chegar ao estado em que estamos hoje, de ambiente favorável à verbalização e consumação pública de actos de racismo.

Nos Anos 90, aqui da cidade, olhávamos para as milícias populares de Oleiros e Francelos com a arrogância que Marcelo usou para descrever Montenegro, como algo “rural”, distante, os resquícios finais do antigo regime. Já então o alvo era o “outro”, no caso as comunidades de população cigana das duas localidades. Nesse noventas, nunca, nem um pouco, se debateu a necessidade de reparar essas comunidades por séculos de discriminação, violência e segregação.

E é assim, que na segunda década do século XXI, as milícias chegaram à cidade cosmopolita, no caso: o Porto, não na sua forma “popular”, mas num assalto de ódio politicamente organizado direccionado a imigrantes.

Em 30 anos conseguimos andar muito para trás.

Desde 2019 o número de imigrantes dobrou no Distrito do Porto. No mesmo período a criminalidade na mesma geografia baixou. Segundo Luís Fernandes, investigador da Universidade do Porto, os nacionais tendem a praticar mais crimes que os imigrantes. Portugal é o país da Europa Ocidental com menor percentagem de imigrantes. Para um país cujos políticos e empresários anseiam publicamente por mais imigrantes (não pelas melhores razões), melhores notícias seria impossível.

Só que não, há muito que os factos não interessam. No último Relatório de Anual de Segurança Interna (RASI), publicado em 2022, dedicam-se linhas aos jovens “desenraizados”, os tais mencionados pela Procuradora-Geral da República, a quem o Estado Social nunca chegou, apenas lhes servem polícia e (in)justiça. Quanto à extrema-direita, no mesmo relatório, é apenas um problema online. Nota-se.

Já não serve culpabilizar André Ventura e o Chega pela situação actual. Por mais que comentadores e analistas tentem desresponsabilizar as declarações de presidentes de câmara e de antigos primeiros-ministros, não há volta a dar. Não há actos isolados, são todos cúmplices. Usam o “outro” para os seus interesses particulares. Para mais, e até considerando muita da vox populi de compreensão sobre os incidentes no Porto, estamos a assistir a uma banalização do mal.

Portugal não tem um problema com os imigrantes e com os seus cidadãos racializados, estes é que têm um grande problema: o Estado português.

O alheamento propositado que o Estado presta a estas populações é de uma violência quotidiana e a maior prova de um racismo estrutural. Ou, como escreveu a actriz Nuna esta semana: é cultura nacional. E eu acrescento: violência de Estado.

Escreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfico.

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