Se der o lugar… ou ceder o lugar?

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Em tempos, a Joana escreveu-me a perguntar se poderia dar o meu nome para uma mesa-
-redonda sobre políticas de diversidade. Explicou-me, mais tarde, que sempre que a convidam para palestrar pergunta sobre a diversidade do painel ou painéis de discussão. Aliás, não se limita a perguntar: recusa participar se no programa não houver, entre os oradores, pelo menos 30% de pessoas de grupos sub-representados. Ou, dito de outro modo, rejeita o convite se a organização se limitar a dar lugar aos mesmos homens brancos e privilegiados do costume.

A prática, fiquei a saber, tem esbarrado em múltiplas resistências, mas a persistência - ao longo de anos - vem permitindo fazer algum caminho.

Em vez de se limitar a ouvir respostas que reduzem o seu refletido posicionamento político a um capricho - “mas sabe que se não vier o desequilíbrio ainda é maior”-, de tempos a tempos começou a encontrar alguma abertura para a mudança.

Foi assim que, quando lhe pediram sugestões para aumentar a diversidade dos painelistas, eu emergi como opção.

A partir dessa referência, houve pelo menos mais quatro ocasiões em que voltei a ser convidada para debates por pessoas da mesma organização.

Participar naquela mesa-redonda fez diferença para mim: expandi a minha rede de contactos e, a partir daí, surgiram novas possibilidades de intervenção. Pude, por exemplo, levar o meu livro Força Africana a outros públicos infantis e juvenis, e, a partir das suas páginas, explicar a importância da representatividade.

Pude, igualmente, sugerir a professores e pais outras referências negras, literárias e não só, sem nunca perder de vista as palavras de Eugénia da Luz Silva Foster, que encontrei no livro Garimpando, pistas para desmontar racismos e potencializar movimentos instituintes na escola. “A discriminação racial ocorre também pela invisibilidade, pelos silêncios e pelas ausências, quer nos textos literários, quer nas imagens, nas ilustrações, que ‘ensinam’ a desvalorização do negro”, escreveu a autora.

Tudo isso me aconteceu sem que daí ‘desacontecessem’ possibilidades para a Joana.
Aliás, ao longo dos sucessivos anos em que recusou participar em mesas-redondas, seminários, conferências e afins - por não estarem alinhados com a diversidade que defende -, os convites não deixaram de aparecer.

Porque apesar de ser mulher e de, a partir desse lugar, ter de lutar contra várias desigualdades de género, a Joana é uma pessoa branca, com estudos superiores, capacidade financeira acima da média e, acima de tudo, consciente de que assumir privilégios não apouca a sua história.

Ao rejeitar ocupar este ou aquele espaço, a Joana não estava a ceder o seu lugar. Estava a constatar o óbvio: se der o lugar a outra pessoa que não dispõe desse acesso, não deixa de usufruir do mesmo. A Joana estava a agir como alguém que tem o privilégio de pressionar para que haja lugares para mais pessoas.

Lembrei-me desta história a propósito de uma reflexão que me ocupou os últimos dias, sobre o ‘dever’ individual de adesão a lutas colectivas consensualmente reconhecidas como justas.
O desejável seria que todas as pessoas pudessem combater todas as causas em defesa da igualdade e Humanidade, e, combatendo, que enfrentassem os mesmos efeitos. Mas ainda não é neste mundo que vivemos.

No mundo em que vivemos, exercer o direito ao protesto ainda é um privilégio, do mesmo modo que as formas de protesto também podem ser uma expressão de privilégios. Pensemos, por exemplo, em como tantas acções por justiça climática adoptam a estratégia mediática de “ir até às últimas consequências” policiais e judiciais, ignorando o que isso representa para as pessoas negras.

Pensemos também no que nos sensibiliza para os protestos. Porque é que a notícia do despejo de uma mãe com quatro filhos menores, no Casal da Mira, na Amadora, não suscita a mesma comoção - e cobertura mediática - do que a notícia do despejo de um casal na freguesia lisboeta de Arroios?

Porque é que o problema da habitação ganha a expressão de crise só e apenas quando rompe as fronteiras das periferias e atinge o centro das grandes cidades?

Porque demasiados dos que gozam do privilégio de agir continuam a fazê-lo essencialmente - quando não exclusivamente - pelo medo de “ceder o lugar” e o poder, em vez de lutarem por mais lugares e direitos para mais pessoas.

Perdemos todos. Ganha o sistema capitalista que nos explora em sucessivas opressões. Sobretudo de raça, género e classe.


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