Saúde e autarquias

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Espero e desejo, com alguma ansiedade, que as próximas eleições gerais no nosso País sejam para as autarquias. E sem qualquer paternalismo faço um apelo a todos os futuros candidatos. Em relação à saúde dos seus eleitores, sejam rigorosos, sérios e competentes. Não sejam demagogos, informem-se com quem sabe, não façam exigências populistas que até possam dar votos, mas que no final, não só possam ser inviáveis, como possam até ser prejudiciais para a saúde das populações que dizem querer servir. Claro que não me refiro, por exemplo, a cuidados de proximidade, imprescindíveis, como sejam o acesso a médicos de família em centros de saúde, refiro-me a cuidados diferenciados, só possíveis de serem providos com competência, por equipas médicas multidisciplinares com muita experiência, apoiadas por infra-estruturas e tecnologias sofisticadas.

Escrever esta crónica é para mim um dever cívico, e a ideia de a escrever nasceu-me de ter visto uma reportagem há pouco tempo numa estação televisiva, absolutamente inacreditável. Passava-se em Barcelos, numa entrevista de rua feita a um qualquer cidadão, a quem era perguntada a opinião se concordava que para ser tratada e operada a um cancro da mama, uma mulher de Barcelos tivesse que se deslocar ao Porto. Apanhado de surpresa, esse cidadão mostrava-se indignado, chegou a dizer que nos querem tirar tudo, coitadas das nossas mulheres. O objectivo da reportagem estava atingido, mais uma vez o nosso SNS era o responsável por tamanha irresponsabilidade e injustiça! O que esse cidadão não sabia é que no ano anterior, se tinham apenas operado no seu hospital duas doentes a essa patologia. O que esse cidadão não saberia é que para alguém ser tratado com competência a um cancro da mama é necessário haver uma vasta equipa multidisciplinar que decida a estratégia global de tratamento, e que a escolha da eventual operação e do seu timing  tem de ser proposta e realizada por uma equipa cirúrgica com experiência, que exige uma casuística mínima.

Tenho a certeza de que esse mesmo cidadão, se devidamente informado sobre a necessidade desse tratamento ser feito com as condições exigidas e ideais, seria o primeiro a concordar com a necessidade da deslocação a um Centro com essas condições. Para certas doenças raras ou graves e complexas, não se pode ter muitas vezes ao pé da porta a resposta mais adequada. Na área a que me dediquei, e de que tenho enorme experiência vivida, passa-se o mesmo. O nosso SNS tem de estar organizado obrigatoriamente em Centros de Referência. Por exemplo, um doente do Algarve não pode ser tratado a um cancro do Fígado ou do Pâncreas no seu distrito.

Não pode e não deve, e devem ser os autarcas, em perfeita sintonia com os responsáveis das ULS locais, a informar os seus eleitores dessa realidade. Falei do cancro da mama por causa da demagógica e lamentável reportagem a que assisti; falei do cancro do Fígado e do Pâncreas, porque foi durante décadas a minha área, mas poderia falar de outras dezenas de doenças complexas que exigem grandes casuísticas, para que as equipas que as tratam tenham a competência necessária. Como pequeno País que somos, com apenas 10 milhões de habitantes, nunca poderemos ter as casuísticas em certas doenças que outros países têm, e que só em certas cidades têm o dobro da nossa população. Por isso tem a nossa legislação previstas, para certos Centros de Referência, casuísticas mínimas adaptadas à nossa realidade, assim como tem previstas as condições infra-estruturais e tecnológicas absolutamente fundamentais.

Os nossos candidatos a autarcas, antes de fazerem o seu caderno de revindicações em relação às necessidades de saúde, têm de estar informados do que é melhor para os cidadãos que os elegem. Devem ter de saber muito bem, sempre em estreita colaboração com as ULS dos seus concelhos e distritos, o que devem e podem oferecer, perante as necessidades de saúde dos seus eleitores. Noutra área a que me dediquei, e fui um dos pioneiros em Portugal, o transplante de Fígado, é fácil de compreender e aceitar a nossa realidade. Ele só pode ser realizado em Portugal em três Centros de Referência, e todos os doentes que dele podem beneficiar, independentemente do local onde vivem, a eles podem ter acesso. Só um candidato autarca irresponsável vai fazer campanha eleitoral, reivindicando para a sua autarquia a necessidade de um quarto Centro. Mensagem final. Senhores candidatos a qualquer autarquia, estudem e informem-se do que devem reivindicar, não sejam demagógicos e populistas, colaborem com o nosso querido SNS, obriguem-no a dar resposta no que podem beneficiar os cidadãos que querem representar, não exijam aos vossos hospitais locais valências que eles não podem nem devem oferecer. Temos 39 ULS em Portugal. A elas se aplicam as mesmas regras. Organizem-se em rede sob a alçada do Ministério da Saúde e da Direcção Executiva do SNS, expliquem aos autarcas das suas áreas de influência o que podem e devem fazer com competência; façam campanhas de informação, nem todos podem ou devem fazer tudo, ajudem a tratar melhor os nossos doentes!

Notas finais:

1 – Os meus filhos são muito críticos em relação a mim. Nenhum é médico, chamam-me com um sorriso e muito carinho um “fundamentalista” dos Centros de Referência. Têm razão, se calhar exagero um pouco. Mas não me importo, se este exagero puder contribuir para que quem me ler ou ouvir reflicta e possa escolher melhor onde deve procurar ajuda perante uma doença grave. 

2 – Um amigo enviou-me, já depois de escrita esta crónica, a página 286 do relatório do Orçamento de Estado para 2025. São quatro parágrafos referentes aos Centros de Referência, dos quais destaco: O Governo concretizará, em 2025, um programa de valorização dos Centros de Referência, e reforçará a aplicação das redes de referenciação no âmbito do SNS.

Importa dinamizar a criação de novos CR. Criar as condições ideais para o seu funcionamento e inová-los, privilegiando activamente a actividade dos mesmos. Muito bem, até porque, no final, fala de dar maior dinâmica e condições de funcionamento à Comissão Nacional para os Centros de Referência. Não sendo politico, e não tendo votado nesta solução de Governo, só posso dizer: Senhora ministra, vamos a isso!

3 – Espera-se, para estas intenções, um apoio entusiástico da nossa Ordem dos Médicos. 


Escreve com a antiga ortografia

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