Salada russa

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History recalls how great the fall can be
While everybody"s sleeping, the boats put out to sea
Borne on the wings of time
It seemed the answers were so easy to find
"To late", the prophets (profits) cry
The island"s sinking, let"s take to the sky

Supertramp, Fool"s Ouverture, 1977

Causou sensação há dias a notícia de que os anfitriões da Cimeira da NATO em Madrid tinham decidido servir aos convidados e jornalistas uma fresquinha ensaladilla rusa, que, a alguns, terá parecido certeira metáfora da guerra que vimos vivendo e, a outros, tão-só uma piada de gosto duvidoso, parecida com a do despacho aeroportuário de um atoleimado governante lusitano.

O caso da salada russa correu mundo e correu tinta, fez manchetes na imprensa internacional, tanto mais que, há um par de meses, vários cozinheiros espanhóis, em solidariedade com a Ucrânia, tinham mudado o nome para "salada ucraniana" ou "salada Kiev", aditando-lhe, em certos casos (v.g., o do chef José Andrés), um conveniente par de tomates. Logo recordaram os entendidos nestas coisas da gastronomia & política que, em tempos de Franco, para não serem acusados de criptocomunismo e russofilia, vários restaurantes de Espanha haviam rebaptizado a salada russa de ensaladilla nacional, mais ao gosto do caudilho e camarilha.

Este não foi, porém, caso único numa semana fértil em conflitos gastro-alimentares, já que, não muito depois, surgiu a notícia de que a UNESCO, sempre atenta, decidira integrar o borscht ucraniano na Lista do Património Cultural Imaterial que Necessita de Salvaguarda Urgente por parte daquele organismo, o qual entendeu que a guerra em curso, além de um cortejo de mortes e feridos e da destruição de templos e monumentos, está a ameaçar a sopa de beterraba. Em 2021, ainda antes da invasão russa, Kiev apresentara a candidatura do borscht à UNESCO, pedido reiterado em Abril passado e agora deferido para gáudio do ministro ucraniano da Cultura, o qual proclamou, triunfante, que "a Ucrânia ganhará a guerra do borscht, bem como esta guerra". É claro que o caldo logo entornou para o lado russo, com a platinada Maria Zakharova, porta-voz dos Estrangeiros, a bombar nas redes que acontecera "xenofobia, nazismo, extremismo em todas as suas formas" (lindo). Ora, e como a UNESCO teve ensejo de esclarecer, não houve qualquer nazismo sopeiro, pois a "inscrição de um elemento" (in casu, uma sopa de beterraba, couve, batata, tomate, carne e natas azedas) "não implica nem exclusividade nem propriedade do património em questão", ou seja, a Ucrânia não poderá registar a sopa como marca só sua, denegando aos russos, ou a quem quer que seja, o direito fundamental ao borscht.

Mais ainda, referiu a UNESCO, o que está em causa não é a sopa da beterraba em si, mas o património humano e as tradições que lhe estão associadas, pois numa situação de guerra, para mais prolongada, as populações não têm condições de cultivar os produtos essenciais ao borscht, de se reunirem para o deglutir em amenos convívios, de transmitirem às novas gerações os respectivos receituários e os ancestrais modos de confecção - tudo verdades como punhos, evidências mais do que óbvias, só recusáveis por aqueles que, estando mais interessados em fazer valer os seus pontos de vista do que no sofrimento dos seus semelhantes, teimam em ingurgitar e regurgitar a propaganda do Kremlin, servida em modo de self-serve. Se dúvidas havia há meses, nos alvores da invasão, elas dissiparam-se ao longo de 140 dias de guerra, perante as imagens de milhares de mortos e feridos, de tragédias humanas terríveis, perante as notícias sucessivas e contínuas de violações de direitos humanos, de massacres em locais vários, de matanças de civis indefesos, abatidos a sangue frio.

Há dias, nas páginas do Expresso, Miguel Sousa Tavares foi ao ponto de dar crédito à mirabolante tese moscovita, segundo a qual os russos não tinham atacado um centro comercial em Kremenchuk, mas sim um depósito de armas que ficava situado ao lado e que foi este que, ao incendiar-se, atingira com destroços o shopping adjacente, fazendo 18 mortos, pelo menos. Mais, disse o Kremlin, que o centro comercial estava "desactivado", o que deixa então por explicar as dezenas de feridos e os quase 20 mortos registados no seu interior, mas claro que isso são minudências que nada contam para MST e quejandos, pois a realidade e a dor dos outros não lhes interessam, o que lhes interessa é, apenas e tão-só, o sucesso da sua aparatosa retórica e dos seus argumentos, os quais, não por acaso, se mantêm inabaláveis e sem mudar uma vírgula, um milímetro que seja, ao fim de vários meses de guerra, após todos sabermos, através de fontes independentes e credíveis (ex. BBC, Reuters, NY Times), das barbáries que os russos estão perpetrando por terras ucranianas: Bucha, Mariupol, agora Kremenchuk, todos os dias há notícias de novas atrocidades, mas nada que preocupe os nossos kommentadores, muito apostados em defender a "Paz", até com maiúscula vistosa, sem nunca apresentarem propostas concretas para a alcançar. De palpável e real, que têm sugerido o PCP, MST ou outros para que a almejada paz se concretize? É fácil falar de "paz", todos a desejamos, mas a má-fé desvenda-se na circunstância singela de os pacifistas de agora, que não disseram palavra nem ergueram um dedo quando as tropas russas se aglomeravam junto à fronteira ucraniana, nunca especificarem o que fariam para terminar esta guerra: entregar o Donbass a Putin? Proibir a entrada da Ucrânia soberana na NATO e, já agora, também na UE? Ceder a Crimeia a Moscovo? Nomear um novo governo em Kiev, prendendo Zelensky e os resistentes? E, mais ainda, quais são as propostas de paz de Vladimir Putin? Que tem ele dito e feito, de concreto e visível, para acabar com a guerra que começou?

Como dizia Sophia, em frase emblemática da sua grandeza poética e ética, vemos, ouvimos e lemos - não podemos ignorar. Muitos de nós ignoram, por exemplo, a política ambiental do Kremlin, que é bem eloquente e expressiva do desprezo que Putin tem para com o mundo inteiro e para com o seu país e o seu povo. Surgiu há pouco um livro esmagador sobre o tema, Klimat: Russia in the Age of Climate Change, de Thane Gustafson (Harvard University Press, 2022), cuja recensão foi feita no último número da The New York Review of Books ("A Hotter Russia", de Sophie Pinkham, NYRB, Junho de 2022). Podem falar do "nazismo" de Zelensky, do Batalhão Azov, do que quiserem, mas, a menos que acreditem tratar-se de propaganda da CIA ou coisa que o valha, o que Vladimir Putin está a fazer ao planeta é algo de estarrecer: a Rússia está a aquecer a um ritmo duas vezes e meia superior à média mundial e o aquecimento no Ártico é ainda maior. E, de uma forma irresponsável e criminosa, tão bárbara quanto as matanças da Ucrânia, os dirigentes do Kremlin saúdam esta tragédia, pois ela irá trazer invernos mais suaves e amenos, abrirá novas rotas nos mares árticos, facilitando o acesso à delapidação das suas riquezas, e irá permitir, enfim, uma expansão da superfície arável, beneficiando a agricultura russa no curto prazo.

O país é grande, imenso, mas dois terços dele são cobertos de permafrost, solo congelado todo o ano, durante milénios. Com o aquecimento global, o degelo do permafrost está a provocar danos terríveis, arrastando casas, estradas, linhas ferroviárias, condutas de energia; vêm à tona cadáveres de animais sepultados há centenas ou milhares de anos, libertando gases letais e pestes várias, como o antrax, que já estão a contaminar o gado. Em 2020, as fundações de cimento de uma fábrica na cidade de Norilsk, criada em 1935 como gulag e situada a 240 km do Círculo Polar Ártico, foram arrasadas pela força dos gelos, sendo despejadas no oceano mais de 21 mil toneladas de gasóleo, quase tanto como no desastre do Exxon-Valdez.

Nada disto demove ou comove o Kremlin, que continua a apostar na agricultura intensiva e destrutiva. Fala-se, e bem, dos crimes de Bolsonaro na Amazónia, esquecendo-se o que sucede na Rússia, o país com a maior superfície florestal do mundo, com um quinto de todas as árvores existentes no planeta. Secas, pragas, deflorestações em massa, incêndios devastadores, como aquele que, em 2019, destruiu dois milhões e 600 mil hectares de floresta. A curto prazo, até 2030 ou 2040, a aposta na agricultura dará frutos e os bens alimentares que são hoje a terceira maior exportação russa, a seguir ao petróleo e ao gás. Simplesmente, dois terços das terras da Rússia europeia, a região mais fértil do país, já estão afectados pela seca e as terras agora expostas pelo degelo do permafrost são arenosas, improdutivas.

CitaçãocitacaoA invasão da Ucrânia é, muito provavelmente, a primeira guerra climática, das muitas que irão surgir: Putin sabe que, com o aquecimento global e a escassez de alimentos, a terra e os produtos agrícolas irão ser uma arma geopolítica crucial, sobretudo para um país como a Rússia, que se deixou atrasar na corrida da tecnologia.esquerda

A invasão da Ucrânia é, muito provavelmente, a primeira guerra climática, das muitas que irão surgir: Putin sabe que, com o aquecimento global e a escassez de alimentos, a terra e os produtos agrícolas irão ser uma arma geopolítica crucial, sobretudo para um país como a Rússia, que se deixou atrasar na corrida da tecnologia. Já estamos, aliás, a ver indícios dessa estratégia e da ambição de capturar as fertilíssimas "terras negras" ucranianas, ricas em matéria orgânica e em minerais, que cobrem 65% do território e fazem da Ucrânia o país com o melhor solo agrícola do mundo. Neste contexto, o aumento de um grau Celsius nas temperaturas globais favorece Putin no curto prazo, ao aumentar a rentabilidade agrícola do seu país, mas condená-lo-á dentro de 20, 30 anos. Infelizmente, esse é um horizonte temporal que pouco importa ao tirano de Moscovo.

Por outro lado, as sanções ocidentais, cuja necessidade é óbvia, pois são a única alternativa a uma guerra aberta, terão como efeito que a Rússia redireccione as suas exportações energéticas para países ou regiões que não têm as mesmas exigências ambientais da UE, o que é outro rude golpe no combate ao aquecimento global. Na verdade, é pouco provável, para dizer o mínimo, que um homem que se dispõe a lançar uma aventura como esta da Ucrânia, que sacrifica e oprime o seu povo, que revela uma tão grande e tão estúpida cegueira, esteja disposto a abdicar da sua maior fonte de poder - o petróleo e o gás - e a realizar a descarbonização do tecido produtivo russo, a qual, ademais, colidiria com os interesses da teia dos oligarcas que se movem na órbita do Kremlin e, além de custos económicos que a Rússia não tem condições de suportar, sobretudo agora, implicaria mudanças em hábitos enraizados no povo (v.g., o uso e abuso de gás doméstico, com brutais desperdícios) que iriam corroer a base social de apoio de Putin e do seu círculo.

Há quem tente explicar a guerra da Ucrânia com os impensados projectos de expansão da NATO para Leste, surgidos nos anos 1990 e no triunfalismo do pós-Guerra Fria. Mas, em contrapartida, pouco se discute a desestruturação profunda que a Rússia sofreu na sua economia e na sua tecnologia durante os loucos anos de Ieltsin e, depois, com o militarismo autocrático de Putin, que se aventurou numa sucessão de empresas bélicas - Chechénia, Síria, Crimeia, agora Ucrânia - que o país não tinha nem tem condições de suportar. O resultado foi um atraso profundo na ciência e na tecnologia (as únicas áreas em que a Rússia é inovadora são a energia nuclear e o armamento), o declínio da indústria exportadora (que marcas ou produtos made in Russia consumimos no Ocidente?), uma dependência absoluta e extrema do petróleo e do gás.

A Rússia assemelha-se hoje aos países árabes ou africanos que sofrem da chamada "maldição dos recursos" ou "doença da Holanda", em que a superabundância de uma dada matéria-prima acaba por ser fatal para o desenvolvimento equilibrado do aparelho produtivo, nomeadamente a indústria. A curto prazo, a energia pode manter a guerra, prolongá-la por muitos meses, mas não permitirá repor as fontes naturais de riqueza (as reservas de petróleo do Oeste da Sibéria estão a declinar e a exploração do petróleo no Ártico é ainda muito cara e dependente de tecnologia Ocidental), como não permitirá refazer o gelo no permafrost, reflorestar milhões de hectares devastados e, mais ainda, contrariar a tendência mundial para as energias alternativas. Se, antes da invasão da Ucrânia, a economia russa já era baseada esmagadoramente na extracção, em desfavor da inovação, a presente fuga de milhares de quadros, jovens e qualificados, terá um efeito enorme, ainda difícil de quantificar, nos frágeis sectores de ponta e vanguarda, com a agravante de estes se encontrarem agora privados de tecnologia e matérias-primas essenciais ao seu desenvolvimento. É sintomático que, desde o início da invasão, a venda e a produção de automóveis tenham caído mais de 80% e, mais sintomático ainda, que os carros agora fabricados na Rússia já não possuam sequer airbags, devendo lembrar-se que a indústria automóvel do país emprega 600 mil trabalhadores, 1% da força laboral - ainda há quem pense que a Rússia está mesmo a ganhar a guerra económica?

Esta salada russa da invasão da Ucrânia pode explicar-se numa e só numa palavra: energia. Foi - e é - a dependência energética da Europa face à Rússia que levou Putin a pensar que poderia atacar Kiev sem consequências de maior, como é a energia que o tem permitido manter-se em combate ao fim de vários meses de desastre. Foi a energia que, ao longo de anos, suscitou as maiores disputas entre a Rússia e a Ucrânia, com esta a depender muitíssimo - mil milhões de dólares/ano! - dos pipelines russos que atravessavam o país, e com a Rússia a construir novos sistemas de condutas através da Turquia, da Alemanha, da Polónia, para contornar a Ucrânia e asfixiar-lhe a economia (até por isso, o Nord Stream 2, feito com a cumplicidade de Merkel, foi um monumental erro geopolítico). É também a energia que, num plano mais vasto, explica o confronto entre a Rússia e a América, tendo esta já saído vencedora na disputa pelos fornecimentos à Europa (de acordo com o Financial Times, as empresas americanas de gás de xisto estão a receber um "tsunami de dinheiro"). Mas, do outro lado do mundo, a China e outros países também beneficiarão da energia russa, do petróleo e do gás vendidos em condições especiais e a preços de saldo. Por isso, quando muitos afirmam que o conflito na Ucrânia é, antes de mais, uma guerra travada entre a NATO e a Rússia, agindo Kiev por procuração dos americanos, convém então perguntar até que ponto ela não será também uma guerra entre a China e o Ocidente, agindo Moscovo por procuração de Pequim. Muito provavelmente, os dois contendores no terreno, a Rússia e a Ucrânia, mais não são do que peões de um xadrez geopolítico mais vasto, onde avultam a China e os EUA, e no qual o petróleo, o gás e os cereais são as armas e os motivos do conflito, a razão de ser deste confronto energético e climático.

Não é preciso ser "especialista", desses que vão às TV, para antever o desfecho da actual guerra da Ucrânia: maior dependência da Europa em face da América, maior dependência da Rússia em face da China. Segundo as estimativas, a Rússia tem recursos energéticos, sobretudo o gás, que irão perdurar até à década de 2050, muito depois de Putin sair do poder e, com jeito, até morrer. Para ele, na perspectiva do seu interesse pessoal, o único que o anima e mobiliza, não há quaisquer incentivos em promover uma transição energética, seja no seu país, seja no resto do mundo. Pelo contrário, as energias limpas e renováveis são os principais inimigos do Kremlin, a quem nada interessa a aposta nas eólicas e nas fotovoltaicas, ou a redução dos consumos energéticos na Europa. A Rússia é hoje o quarto país com mais emissões de gases com efeito de estufa do planeta e, paradoxalmente, à medida que a Europa se for libertando da energia russa, Moscovo ficará cada vez liberta de constrangimentos ambientais nas suas exportações, como o Mecanismo de Ajuste de Carbono na Fronteira (CBAM), um imposto à energia importada pela UE cuja adopção por Bruxelas, em 2019, fez entrar em pânico os oligarcas e os dirigentes russos. Ao mesmo tempo, a UE vê-se obrigada a adiar a sua transição energética ou, no mínimo, a aceitar a perpetuação do recurso ao nuclear e, pior ainda, ao gás, como se viu recentemente numa controversa deliberação do Parlamento Europeu.

Assim, mesmo que não saibamos quem irá ganhar ou perder esta guerra, se a Rússia ou se a Ucrânia, uma coisa é certa, iniludível: o maior perdedor irá ser o planeta Terra, os vencidos seremos todos nós, seres humanos cada vez mais próximos da extinção final. Lançar uma guerra numa altura destas, em que precisávamos de estar unidos como nunca na luta contra o aquecimento global, constitui um verdadeiro e abominável crime contra a Humanidade. Como é possível negá-lo?

P. S. - Enquanto isso, um estudo divulgado há pouco revelou que Portugal e Espanha atravessam o maior período de seca em 1 200 anos, um cenário aterrador, como aterradora é a notícia de que o Supremo Tribunal dos EUA, na recentíssima decisão West Virginia v. EPA, por cá pouco falada, acaba de dar uma estocada de morte nas esperanças ambientais de Joe Biden. É o fim do mundo - literalmente.


Historiador.
Escreve de acordo com a antiga ortografia.

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