Revisitar a Fronteira: A Constituição é uma linha de defesa
O raro emparceiramento público da magistratura e da política no pós-25 de Abril tem no projeto da Revista Fronteira (1978-1981) uma história que importa desvendar e que o livro Fronteira - Uma Revista Figura do Judiciário, Almedina, 2024, a ser lançado, no dia 23 de maio, no Tribunal da Relação do Porto, procura fazer justiça.
A Revista Fronteira nasceu sob o lema “A Constituição é uma linha de defesa e de combate: uma fronteira entre abril e as oposições a abril”, frase da autoria de Francisco Piteira Santos, constante de um artigo no Diário de Lisboa de 08.10.1977. Integrava uma Cooperativa denominada CODECO-Cooperativa Editorial Defesa da Constituição que tinha como objetivo, segundo os seus estatutos, defender “o projecto social e político para que aponta a Constituição da República Portuguesa” e opor “uma barreira firme” ao que chamavam a “tendência para esquecer a Constituição no mundo oficial, judiciário e administrativo, privilegiando leis menores, e até posturas, circulares e simples ordens”.
Curiosamente refira-se que a LUAR tinha tido um jornal que também se chamava Fronteira (entre 1973 e 1975 dirigido por Fernando Pereira Marques) e em 1975 tinha sido criada a Editorial Fronteira que editou vários livros políticos marcadamente de esquerda até precisamente 1978.
A nossa Revista Fronteira, cujo primeiro número sai em janeiro de 1978, teve como diretor o Juiz Sá Coimbra e congregou um núcleo aglutinador essencial de qualificados e diferenciados Magistrados Judiciais (geograficamente localizados no Porto) de que me permito destacar Flávio Ferreira, Eliseu Figueira, Fernando Fabião, Roseira Figueiredo, Fernando Amâncio Ferreira, José Vaz dos Santos Carvalho, Alfredo José de Sousa e Luís Noronha do Nascimento.
Também abriu as suas portas ao Ministério Público através, nomeadamente, de Artur Rodrigues da Costa, Esteves Remédio, Arménio Sottomayor, João Manuel de Sousa Fonte e Francisco Pinto dos Santos e mantinha uma estreita relação com o Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, cuja sede, no Porto, albergava a correspondência dirigida à CODECO e que, não esqueçamos, tinha uma forte atuação reivindicativa e de apelo à inovação do sistema judicial.
Além disso, que já não seria pouco, abrigou um vasto leque de intervenções de grandes personalidades da vida pública portuguesa.
Permito-me, também, enunciar e recordar alguns desses ilustres fronteiristas: Armando de Castro, Eliana Gersão, José Augusto Seabra, Maria Antónia Palla, Fernando Luso Soares, António Borga, José Manuel Nunes, Victor de Sá, Augusto Santos Silva, Gomes Canotilho, Lopes Cardoso, Rui Grácio, António Goucha Soares, Macaísta Malheiros, Amâncio Ferreira, António Arnaut, Avelãs Nunes, Alberto Martins, José Barros Moura, Vital Moreira, Pezarat Correia, Wladimir Brito, Victor Louro, Eduardo Lourenço, Pinto Ribeiro, Miller Guerra, José António Barreiros, e José António Oliveira Rocha.
A notoriedade e a variabilidade profissional dos autores e dos temas que trataram, colocam a Fronteira num patamar que ultrapassa em muito o acantonado universo do direito e cruza transversalmente a sociedade portuguesa, sem escamotear o claro compromisso fronteirista de matriz político que envolvia todo o projeto.
Sob o ponto de vista judiciário, a Revista Fronteira insere-se num movimento mais global, com origem em Itália, na Magistratura Democratica (MD) que nasce em 1964, mas se solidifica a partir de princípios dos anos 70 e que engloba diversas sensibilidades da chamada sinistra giuridica.
A sua história em Itália já começou a ser feita com detalhe, mas a história das suas ramificações ideológicas e das especificidades que assumiu, por exemplo, entre nós, está muito pouco estudada. Refira-se que em Espanha, um movimento congénere, a Justicia Democratica surge em 1971 dando origem aos Jueces para la democracia já depois da queda do regime franquista. E surgem, aliás, nessa altura, várias outras revistas críticas do direito na Europa: «Critica del diritto» (Itália); «Jueces para la democracia» (Espanha); «Kritische Justiz» (Alemanha); «Kritick van Recht» (Holanda); «Política del diritto» (Itália); «Procés» (França); «Qualegiustizia» (Itália). Esta última, depois de algumas dificuldades iniciais, assume-se como a revista da MD e foi publicada em 1970, pela editorial "II Mulino" de Bologna, assumindo-se como uma revista de crítica global da organização jurídica e do seu funcionamento.
Não vamos, obviamente aqui, descrever esse percurso mas sem a sua referencia dificilmente se percebe onde se insere a Fronteira no contexto europeu e qual a sua matriz (refira-se que Flávio Ferreira referencia este movimento no seu texto da Fronteira Reflexões sociológicas sobre a magistratura, onde mostra estar perfeitamente ciente das suas conceções).
A MD tinha dois polos de suporte: o marxismo com a sua crítica da teoria do direito e do Estado e uma nova forma de juspositivismo, chamado crítico e constitucional.
Luigi Ferrajoli, que foi juiz e um dos fundadores da MD, expressou com notável clareza as três principais coordenadas da cultura dos Juízes progressistas: 1) a crítica da ideologia do carácter puramente técnico neutral da jurisdição; 2) a descoberta da Constituição como norma fundamental e, por conseguinte, da inevitável incoerência entre os valores que esta irradia no ordenamento e as leis ordinárias; 3) a opção de campo pelos valores constitucionais na interpretação e aplicação da lei, com a máxima independência.
Esclareça-se que, como também escreveu Ferrajoli, nunca foi contestada a legalidade positiva. Contestou-se apenas o monopólio ideológico da legitimidade jurídica até então detida por uma jurisprudência conservadora, reivindicando a superioridade das normas constitucionais sobre qualquer outra fonte.
A Revista Fronteira tinha uma matriz claramente de esquerda e insere-se neste movimento que vem de fora e assume especificidades derivadas da nossa conjuntura.
Há que elucidar que a esquerda portuguesa tinha apenas um interesse residual nas grandes questões judiciárias, se excetuarmos obviamente, as imediatamente decorrentes da falta de liberdade e da repressão. Pode-se dizer que sob o ponto de vista da justiça e do poder judicial se sabia o que não se queria, mas havia muito pouca reflexão sobre aquilo que se pretendia eventualmente em substituição.
O pensamento programático sobre a justiça era vago, impreciso e sobretudo com carência de resposta em algumas interrogações de base: a Revolução trazia alternativas sólidas e exequíveis ao modelo burocrático tradicional de organização da justiça? Como compatibilizar uma magistratura estruturada numa base passiva e conservadora com uma emblemática frase de Flávio Ferreira que referia que “a enfatizada independência judicial não se confunde com a neutralidade política do sistema judiciário nem pode ser tomada como sinal do apoliticismo dos seus agentes”?
Talvez tudo isto explique a razão de no nosso associativismo judicial nunca terem aparecido e se terem adotado as ideológicas correnti italianas ou as corrientes espanholas que constituiu um dos grandes deficits para o debate plural, para o controlo recíproco e para o crescimento posterior da nossa magistratura (independentemente dos vícios de que mais tarde vieram a enfermar e até da sua degenerescência atual…).
A união dos Fronteiristas em torno da Constituição de 1976 e da sua concretização prática foi o mote de combate de uma vasta frente, num pano de fundo político-jurídico de grande complexidade. Para este conjunto de personalidades o sentido a realçar na Constituição seria o socialismo (ou a transição para o socialismo), o rumo para uma sociedade sem classes, o poder democrático das classes trabalhadoras, o controlo de gestão, a apropriação coletiva, a eliminação dos monopólios e dos latifúndios, as nacionalizações, o plano, a reforma agrária, as organizações populares de base.
A proposta de Sá Carneiro, imediatamente secundada por várias personalidades do PPD e do CDS, efetuada em março de 1978, de realização de um referendo que possibilitasse uma revisão antecipada da Constituição e contornar os limites materiais que lhe estavam impostos, foi o mote para a realização das Jornadas de Estudos Constitucionais, organizadas pela Codeco/Fronteira, ocorridas em Coimbra, no Porto e em Lisboa, entre 1978 e 1981, com uma enorme participação e repercussão nacional. A sua importância e singularidade na história constitucional pós-25 de Abril resulta clara da qualidade dos intervenientes nessas Jornadas que incluíram nomes, além dos acima referidos, como Miguel Galvão Teles, Luís Nunes de Almeida e Melo Antunes, Presidente da Comissão Constitucional e membro do Conselho da Revolução. Este acabou por defender a substituição deste órgão por um Tribunal Constitucional composto por 15 membros: seis juízes e os restantes “cidadãos de reconhecida idoneidade e isenção”, por não se poder converter num “autêntico governo de juízes” que seriam “os elementos mais conservadores e reacionários de toda a sociedade tanto capitalista como socialista” (recriando uma célebre frase de Lenine).
O envolvimento neste programa de figuras relevantes do mundo judicial português, obrigatoriamente alheado do menor fumo político durante meio século e que a partir daí também voltará a um intervencionismo social muito baixo e ao “apoliticismo”, traduz uma originalidade que carece de reflexão. Como também importará o estudo centrado sobre os principais protagonistas da magistratura progressista de finais de 70 de perfis bastante diferentes, mas aqui congregados esmagadoramente na zona do Porto numa explicação aventada de antagonismo com o Poder, centrado em Lisboa, no Terreiro do Paço. De todo o modo, o local da sua emergência não é pormenor de somenos: o afastamento de Lisboa contribuiu para uma distanciação geográfica e cultural do centro decisório que favoreceu o dissenso e a autonomia.
A importância da Fronteira para o judiciário português, ao congregar um vasto grupo ideologizado e politizado, liderado por juízes no ativo, com grande imaginação criadora e abertura ao exterior, não está suficientemente analisada no que respeita ao seu legado e também no que respeita à sua falta de continuidade.
Podemos, no entanto, realçar, sem qualquer esforço, que representa um marco fundamental do periodismo judiciário pós- 25 de abril e que a magistratura portuguesa lhe deve muito na emancipação de uma velha cultura de corpo moldada numa predisposição à subalternidade e na separação social e ideológica da sociedade.
E embora alguns dos valores que a Fronteira teimou em defender tenham sido, amiúde, postergados, a sua história é uma importante história esquecida que, ultrapassando a tópica literatura de juristas, emerge como um importante exemplo de uma cultura jurisdicional crítica, aberta e de qualidade.
Urge, mais do que nunca, recordá-la.
Escreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfico.