Ressentimentos

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Só por uma vez os partidos do centro tiveram uma percentagem tão pequena somada: foi em 1985 com epifenómeno do PRD. Neste caso, hoje e já ontem, o Chega veio para ficar.

As votantes têm menos fidelidade partidária e votam cada vez mais com a vida de cada um. E adivinhem? A vida não vai boa. Ressentimento número 1.

Venderam-se sonhos. Década após década foi-se acreditando até desacreditar. Este último verbo mobiliza uma boa parte do voto, uma grande parte, se considerarmos a população afastada de vários privilégios. Ressentimento número 2.

Olhando com atenção para os votos do Chega em 2019 e 2022, já se observavam algumas tendências: o país esquecido do interior e as periferias de classe média-baixa e ex-proletárias, também vizinhas da população racializada. Ressentimento número 3.

2024. Dentro dos bairros subproletários onde passo os meus dias, onde moram afrodescendentes, pessoas de etnia cigana e outros cujos ascendentes vieram há décadas procurar uma vida melhor na cidade, já chegou a disputa. A mobilidade social é tão distante e a vida quotidiana a mesma há anos; que apenas parece sobrar a luta por uma honra qualquer, que no desgaste destas nossas vidas neoliberais é apenas competir para ganhar aquele micro privilégio esmola ao meu vizinho, ao meu semelhante. Ressentimento número 4.

Igor Martins / Global Imagens

Há uma grande teatralização nos media e nos dirigentes dos partidos do arco de governação sobre a ascensão do Chega. Vendem-nos o simulacro, mas essa subida é proporcional à degradação das condições de vida de todos nós, consequência das simulações das crises financeiras e respetivas medidas de austeridade.

O Chega é de extrema-direita, fruto da visão dos seus ideólogos, mas a maior parte dos seus votantes não o são. A sociedade está fraturada, carece a filiação - o sentimento de pertença a um projeto maior, e o partido oferece um menu para cada pessoa de forma independente, e esse menu nem tem de ser verdadeiro.

O ressentimento explorado pelo Chega é cúmplice das atuais hegemonias económicas e um aliado para a sua perpetuação. É um garante de que o bolo cada vez maior da precariedade entre nós não aja numa consciência coletiva que poderia ameaçar o poder instituído.

A riqueza aumenta, mas concentra-se num grupo cada vez mais restrito de pessoas. Os lucros atingem valores recorde, mas o risco de pobreza sem transferências sociais mantém-se superior a valores de 1994. O Chega não vai resolver esta décalage, é um aliado sistémico para a sua expansão.

Querem verdadeiramente combater o Chega? Saiam dos gabinetes, criem saber político instalado, deixem a população participar verdadeiramente, e filiem as pessoas como comandantes de uma mudança social.

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