Registo de interesses
A introdução na nossa democracia dum registo de interesses para titulares de cargos políticos não foi coisa fácil. Antes das eleições de 95, vigorava apenas a obrigatoriedade de declarações de património e rendimentos ("controlo público da riqueza"), com um acesso bastante dificultado, e um circunscrito catálogo de proibições legais (incompatibilidades e impedimentos).
Foi só no início da VI legislatura (91- 95) que surgiu - por iniciativa de Jaime Gama, então líder parlamentar do PS - o primeiro projecto de lei visando a criação de um registo de interesses (está publicado no Diário da Assembleia da Republica de 22/1/92) prudentemente inspirado em soluções doutras democracias. Na fase inicial focado nos deputados, mas com óbvia vocação mais vasta, previa-se nele a criação, no Parlamento, de um instrumento que facultasse ao público "informação sobre interesses de que sejam titulares e benefícios materiais que aufiram e que possam ser considerados susceptíveis de influenciar as suas opções no exercício dos respectivos mandatos", avançando-se uma tipificação das situações a abranger. Assumia-se no projecto que a consulta do registo fosse plenamente facultada ao público no horário normal de funcionamento dos serviços da Assembleia e, seguindo o exemplo do Parlamento britânico, previa-se a edição anual duma publicação oficial contendo a informação registada (vivíamos num mundo pré-net : hoje o acesso a essa informação faz-se, em várias democracias, com algums clics!). O âmbito da inovação proposta seria depois alargado, com a extensão a todos os titulares de cargos políticos da obrigação de "tornar público património, rendimentos e interesses" (cf. projecto de revisão constitucional n.1/VI, apresentado pelo PS).
Durante mais de três anos, a maioria absoluta do PSD - sob a presidência de Cavaco Silva e com Duarte Lima na liderança parlamentar - inviabilizou a criação desse registo. Em Junho de 1995, aquando do primeiro passo noutra direcção, Cavaco Silva já deixara esse lugar, substituído por Fernando Nogueira, e a última palavra que dele se conhecia era a de que não via condições para legislar sobre a matéria antes do fim da legislatura. O facto é que as primeiras normas respeitantes ao registo de interesses, quer em relação a deputados quer a governantes, só entrariam em aplicação com Cavaco Silva já fora de São Bento.
Estando em causa a observância, por parte de Luís Montenegro, de regras e princípios aplicáveis em sede de registo de interesses, a ironia da história revela-se na entrada em cena, em plena contenda eleitoral, dum testemunho do ex-Presidente. Trata-se de um notável depoimento em que o professor de Finanças admite erro de avaliação mas exclui a hipótese de qualquer incumprimento por parte do advogado. Dada a responsabilidade cimeira de Cavaco Silva no protelamento, por vários anos, da introdução do registo de interesses na nossa democracia, é caso para falar também de erro manifesto na escolha da principal testemunha abonatória arrolada. E será legítimo retirar do episódio que, acerca de registo de interesses, um e outro não pensarão diferente.
Jurista, antigo ministro. Escreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfico