Redescobrindo David Fincher
A reposição do filme Seven (1995), entre nós lançado com o subtítulo Sete Pecados Mortais, é mais um belo acontecimento cinematográfico que estabelece um sugestivo paralelo com os ciclos dedicados a David Lynch e Jacques Demy, por estes dias também disponíveis em salas do circuito comercial. A saber: relançar títulos “antigos” nas salas de cinema não é exatamente o mesmo que voltar a exibir objetos mais ou menos esotéricos que “ninguém” conhece. É, isso sim, manter viva as memórias plurais da história do cinema - o que, além do mais, salvo melhor opinião, pode ser uma estratégia comercialmente interessante.
Há décadas que alguma crítica de cinema chama a atenção para o valor cultural desse pensamento comercial, muitas vezes encontrando apenas o eco cínico dos que gostam de proclamar que os intelectuais não percebem nada do assunto (Portugal é, aliás, um país em que algumas linguagens sociais e mediáticas continuam a usar a palavra “intelectual” como uma forma de insulto). Saudemos, por isso, a celebração dos 30 anos de Seven, parábola moral sobre o poder do Mal (com maiúscula!) cujas ressonâncias simbólicas o tempo não esbateu.
Ainda no domínio específico do mercado, vale a pena dar conta de outro elemento que, a meu ver, está longe de ser banal. Assim, se consultarmos a lista dos cinemas em que o filme de Fincher pode ser visto ou revisto, encontramos três salas com dispositivos de projeção IMAX (Colombo, em Lisboa, Mar Shopping, em Matosinhos, e CascaisShopping). É um sintoma que transcende o território nacional, já que decorre dos muitos desafios que, em tempos de plataformas de streaming, se colocam aos mercados tradicionais. Estamos perante um cristalino exemplo de diversificação da oferta nos grandes ecrãs, finalmente fazendo passar uma mensagem clara para os consumidores: o IMAX não é, não tem de ser, não há nenhuma razão comercialmente pertinente para que seja uma “coutada” das produções Marvel & afins... Um dia destes, talvez alguém repare, por exemplo, que as superproduções da década de 1960 (Lawrence da Arábia, etc.) foram pensadas para ecrãs gigantes como aqueles que existem atualmente nas salas IMAX.
Para quem, eventualmente, ainda não conheça o filme, lembremos apenas a mais básica sinopse: estamos perante a investigação policial de uma série de crimes cujo autor segue uma lógica de “ilustração” dos sete pecados mortais, segundo a inventariação que herdámos do catolicismo. Daí que todas as memórias cinéfilas de Seven sublinhem duas componentes vitais do trabalho de Fincher: primeiro, a capacidade de reinventar as matrizes clássicas do thriller; segundo, o reencontro com a vocação trágica desse género de filmes, repondo a questão do pecado como um dado concreto, e também um assombramento, das frágeis relações humanas.
Há uma linha temática e, mais do que isso, sensorial que liga Seven a outros momentos igualmente prodigiosos da filmografia do seu autor - pensemos nos exemplos de Zodiac (2007) e O Assassino (2023), este com chancela da Netflix. Fincher entende o cinema como um jogo entre aquilo que as personagens imaginam que são e as novas personagens em que se transformam através da ação (num sentido eminentemente físico, antes do mais). Vale a pena citar o exemplo luminoso de Sala de Pânico (2002) em que mãe e filha (Jodie Foster e Kristen Stewart), encurraladas por assaltantes no interior da sua própria casa, vivem um drama de resistência que envolve também um processo de mútua descoberta.
Será preciso acrescentar que Seven é também um exemplo modelar das qualidades de Fincher como diretor de atores? Morgan Freeman, Brad Pitt, Gwyneth Paltrow e Kevin Spacey distinguem-se por essa capacidade de desafiar os próprios limites da verdade humana. Recorrendo a uma expressão de impecável classicismo, são “maiores que a vida” - seja qual for a dimensão do ecrã.
Jornalista