Queríamos trabalhadores, mas vieram famílias

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Na década de 70, percebeu-se que os trabalhadores que tinham ajudado na reconstrução da França, Alemanha e outros países, eram pessoas com famílias. Os Estados não se lembraram que estavam vinculados a respeitar os direitos fundamentais desses trabalhadores. Iniciou-se o movimento pelo direito ao reagrupamento familiar, que mais tarde viria a ser reconhecido por vários tribunais constitucionais (incluindo o francês), consagrado numa Diretiva de 2003 da União Europeia, e afirmado pelos tribunais europeus.

Com algumas décadas de atraso, Portugal agora acorda para a realidade do we wanted workers, but families came. Gera-se o pânico porque afinal as pessoas regularizadas têm direito a trazer a família. E brota então uma absoluta confusão, que envolve trocas de culpas, fake news e petições assinadas por pessoas que nem se preocupam em saber da legalidade do que estão a pedir. Importa analisar este assunto com cuidado.

1. O Reagrupamento Familiar não foi “criado” por este Governo nem pelo outro. Corresponde a um direito fundamental, está na nossa lei há muitas décadas, e desde 2003 é uma exigência da UE.

2. Correspondendo a um direito decorrente do art. 36.º da CRP, considero que não se pode suspender fora de estado de emergência. E pode ser restringido dentro do que a Diretiva admite. O Parlamento está vinculado a ela. Ora, a Diretiva não fala de capacidade de acolhimento do país como motivo para possível restrição.

3. Sou muito sensível à questão da capacidade de acolhimento, mas ela não pode ser gerida através do Reagrupamento Familiar (ou do Asilo). Não é uma opinião. É aquilo a que estamos vinculados, e fazer coisas fora da lei ou do Direito da UE é abandonar os princípios do Estado de Direito. Não cedamos nisto nós também.

4. O Reagrupamento familiar já tem limitações: o imigrante tem de ter alojamento adequado para si e família e comprovar que consegue sustentar todos. Não pode ainda ser considerado, nem ele nem a família, risco para a segurança nacional e ordem pública.

5. A Diretiva apenas permite que se acrescentem testes de integração (língua, cultura) aos familiares. Sempre tive muitas dúvidas sobre a proporcionalidade destes testes, se não se exige o mesmo aos imigrantes de 1ª entrada. Mas, outra vez: não se permitem suspensões tout court, temporárias ou não, do reagrupamento.

6. Estão assustados com os números? Voltamos às alterações de 2017 e à profunda irresponsabilidade do Governo da altura. Quando se permitiu regularizações de qualquer pessoa que entrasse em Portugal e arranjasse trabalho ou recibos verdes, isso já implicava residência para os cônjuge, filhos, incluindo só os do cônjuge, dessas pessoas. Chegou agora esse momento.

7. Os familiares também têm direito a trabalhar (respondendo a quem se pergunta sobre o que cá vêm fazer). E não, não se pode trazer duas, três ou quatro esposas.

Enfim, tudo errado aqui: um Governo anterior que fez uma coisa catastrófica a nível de imigração, os que acusam o Governo de estar “a abrir portas”, e do atual Governo, que propõe mudar a lei para lá do que a Diretiva permite.

Estamos – e estaremos - ainda a viver os efeitos das manifestações de interesse, na forma em que foram implementadas. E, repito, não podemos suspender o reagrupamento familiar, tal como não se pode suspender a proteção de refugiados. Se querem suspensões, que seja de novas entradas para imigração de outros tipos, que não correspondam a direitos fundamentais. Comecem pelos vistos nómadas, ou os vistos gold, que caem na absoluta margem de liberdade do legislador e são e de muito duvidoso interesse público.

Professora da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

Investigadora do Lisbon Public Law

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