Quem tem medo do mecenato no jornalismo?
O Parlamento chumbou na sexta-feira as propostas do Bloco de Esquerda e do Livre para a inclusão do jornalismo sem fins lucrativos no estatuto de utilidade pública. O diploma, que permitiria a atribuição de benefícios fiscais ao mecenato no jornalismo, nomeadamente em pequenos projetos independentes, foi chumbado com os votos contra do PSD, CDS-PP e do Chega, apesar dos votos a favor dos restantes partidos. Foi uma oportunidade perdida para a classe política passar finalmente das palavras aos atos, ainda que de forma limitada, no que diz respeito a apoiar o jornalismo enquanto atividade essencial à democracia.
Segundo a Lusa, o PSD justificou o chumbo das propostas com o risco de surgirem entidades “criadas por partidos ou sindicatos, para usarem benefícios fiscais, de modo a promover agendas próprias”. Já o Chega argumentou que existiria o risco de ficar em causa “a separação entre o jornalismo e poder político”, enquanto o CDS defendeu que as medidas anunciadas recentemente pelo Governo vão assegurar a viabilidade do setor.
São argumentos que fazem sentido, mas que se podem rebater: para começar, o risco de dependência e de instrumentalização dos media por poderes políticos, empresariais ou corporativos já existe há muito e tenderá a aumentar à medida que o modelo de negócio enfraqueça cada vez mais, devido à queda das receitas de circulação e publicidade. Um sistema assente no mecenato poderia ser mais transparente, se fosse bem regulado. O que é preferível, uma entidade sem fins lucrativos que tem regras claras a respeito dos meios de financiamento e da governance dos meios de comunicação que detém, ou uma empresa que tem fins lucrativos mas acumula prejuízos há 30 anos?
Por outro lado, os apoios anunciados recentemente pelo Governo constituem um passo no bom sentido, se realmente se concretizarem, mas não resolvem o problema de fundo, que é o facto de existir uma situação de falha de mercado no jornalismo enquanto atividade económica, à escala global. Leia-se, estamos perante uma situação em que a alocação de bens e serviços pelo mercado livre deixou de ser eficiente, com prejuízo para a sociedade em geral.
Se o jornalismo deixou de ser, em muitos casos, viável enquanto atividade económica com fins lucrativos, mas continuamos a consumir informação e a precisar desta atividade para preservar a democracia, temos de encontrar outras formas de a financiar, a par do mercado. Já fazemos isso, enquanto sociedade, com o mecenato cultural e científico. Podemos fazê-lo também no jornalismo, através de um sistema de mecenato que seja rigoroso, transparente e “cego”, isto é, que seja aplicável a todas as entidades que cumpram determinadas regras e sem que o poder político possa selecionar quem tem ou não direito a esses benefícios.
Claro que isto só seria viável com regras rigorosas para estas entidades e o seu financiamento, a par de uma regulação eficaz que definisse o que é jornalismo. Juntamente com regras para impedir a concorrência desleal no setor, como uma eventual limitação do investimento publicitário nos meios financiados através de mecenato.
Esperemos que o tema possa voltar em breve ao Parlamento e que este tenha sido apenas um primeiro passo para uma reflexão coletiva sobre o assunto. Até lá, continuaremos a tapar o sol com a peneira.
Diretor do Diário de Notícias