Que saudades
Não sei quantas pessoas vão ler o que escrevo e, dessas, quantas vão concordar comigo. Mas é irrelevante, digo o que penso, tenho 75 anos, mais de 50 passados no exercício da medicina, a esmagadora deles como cirurgião, não só em hospitais do SNS, como em clínicas e hospitais privados. Nestes últimos, diagnostiquei e operei doenças menos graves, que não exigiam os recursos técnicos e humanos que só consegui reunir nos hospitais do SNS. E praticamente desde 1986, dediquei-me às doenças do fígado, das vias biliares e do pâncreas (HBP).
Só em Fevereiro de 2005 consegui finalmente “oficializar” a criação, dentro do SNS, de um Centro de Referência (CR), dedicado exclusivamente às doenças HBP. Sob a minha direção e actualmente dirigido pelo mais brilhante e competente cirurgião HBP da Europa e um dos melhores do Mundo, o CHBPT só é competente no tratamento das doenças HBP e, se qualquer dos seus cirurgiões se atrevesse a operar patologias oncológicas de outros órgãos, deviam ser alvo de um processo da Ordem dos Médicos.
Ainda há bem pouco tempo, um dos nossos transplantados hepáticos há mais de uma década, apareceu com um cancro do esófago, e naturalmente foi-lhe dito que não era no nosso CHBPT que podia ser definida uma estratégia terapêutica global e, ainda menos, se indicada, uma eventual intervenção cirúrgica. Pela simples razão de que não éramos competentes.
Em Portugal existem neste momento 112 CR, muitos deles para doenças raras, muitos outros para doenças graves e complexas que exigem recursos a infra-estruturais, técnicos e humanos sofisticados. Nestes CR já existentes - e a começar a ser auditados depois deste Verão -, não existem listas de espera que ultrapassem os prazos recomendados.
Decidiu-se, decidiu a Comissão Nacional para os Centros de Referência - de que sou o actual presidente -, não criar de imediato, mais nenhum CR em outras áreas antes de auditar e re-certificar os que já existem.
Os CR em Portugal, resultaram de uma legislação do tempo do ministro Paulo Macedo, em boa hora, e nunca foram, como era fundamental, entusiasticamente defendidos pela Ordem dos Médicos. Esta reforma estrutural fundamental, levada a sério, foi das mais importantes na política de saúde. Na luta pela segurança e qualidade dos tratamentos proporcionados aos nossos doentes.
A Ordem dos Médicos está representada, e muito bem, na CNCR, mas isso não chega: precisamos do seu envolvimento mais assertivo. Tal como precisamos que a OM se disponibilize em outras áreas. Como sejam, a alteração dos actuais limites de idade que dispensem os médicos de trabalhar nas Urgências, os números mínimos da constituição das equipas, a possibilidade de considerar que os especialistas formados no SNS, possam ter de ficar um par de anos no SNS, antes de optarem por seguir novos rumos. E ainda, aceitar criar uma nova especialidade, a Medicina de Urgência.
E porque não, ser a nossa OM, a liderar reformular o prestígio das carreiras, acabando com grelhas concursais ridículas, desprestigiantes e que não permitem seleccionar os melhores. Também, não se refugiar numa defesa corporativa e fundamentalista do acto médico, para não aceitar que enfermeiros especialistas de certas áreas, possam ser melhor aproveitados na prestação de cuidados.
Aos sindicatos compete lutar por melhores salários, mas aceitar que possa ser exigido um maior número de horas extraordinárias, sobretudo aos internos em formação.
Gostei de ouvir ao nosso Bastonário, que a reforma estrutural do nosso SNS (sobre a qual nunca tem uma ideia), exige uma discussão que ultrapasse lutas partidárias e preconceitos ideológicos, mas não era assim que pensava quando antes das últimas Eleições Legislativas, patrocinou uma carta aberta que era um violento, parcial e agressivo libelo contra o Governo de então.
Claro que as condições actuais, as realidades actuais do SNS, são diferentes daquelas que existiam aquando da sua implementação. Não na década de 60, como disse o Bastonário, porque nessa altura não havia SNS, mas da década de 80, nos primeiros anos da sua implementação.
Tenho saudades do tempo em que para se ser Bastonário, era necessário ter uma carreira médica de grande prestígio. Em que para se chegar a este cargo, como acontece actualmente, não fosse apenas exigido um “carreirismo” opaco dentro das estruturas da OM. Ou que esse cargo servisse também para proporcionar acesso a cargos políticos no futuro.
Sempre estranhei que os últimos bastonários, depois de visitas a Urgências do SNS, apenas para constatar e amplificar por vezes o caos existente, nunca tendo uma palavra para como alterar a situação, não fossem a seguir visitar uma Urgência de qualquer hospital privado e constatar as suas gritantes deficiências.
A OM deve estar ao serviço da defesa dos seus associados, na exigência do cumprimento dos aspectos éticos e deontológicos da nossa profissão, assim como na defesa intransigente da qualidade da medicina praticada. Não lhe compete fazer oposição a qualquer Governo que exista.
Que saudades tenho de Machado Macedo, um grande senhor e um prestigiado médico cirurgião. Foi Bastonário na idade própria, não o foi para ganhar notoriedade para depois ser presidente duma qualquer Câmara Municipal, ou deputado à Assembleia da República.
Escreve com a antiga ortografia