Quando o legislador não tem juízo, o “bufo” é que paga

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A nossa relação com a denúncia é complexa. Primeiramente, pois ao basearmos as nossas relações em afetos - inclusive, relações institucionais -, tornamos mais íntimo e constrangedor o ato de denunciar. Ademais, os estigmas remanescentes do Estado Novo, que naturalmente não sucumbem em apenas 50 anos, desincentivam-nos a agir.

Então, ridicularizamos e repudiamos “chibos” e “bufos”, atribuindo à denúncia uma conotação negativa que reforça a sua repressão, e até às crianças repetimos desde tenra idade “não sejas queixinhas”. Mas quantos crimes poderiam ter sido evitados se lhes fosse permitido fazer “queixinhas”? Paradoxalmente, como permitimos, sistematicamente, que as consequências para os denunciantes superem largamente as dos criminosos?

Felizmente, uma decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) impediu que tal vício saísse impune novamente esta semana.

Na sequência do afastamento de um assistente parlamentar que havia denunciado casos de assédio e irregularidades financeiras a envolver um deputado do Parlamento Europeu, o TJUE considerou que, ao limitar-se a informar o denunciante de que a não-renovação do seu contrato era a única proteção prevista, o Parlamento não assegurou que o mesmo não sofresse consequências prejudiciais face ao seu estatuto de denunciante. Conjuntamente, foi ainda considerado que o Parlamento violou o seu dever de confidencialidade ao divulgar, sem autorização, a condição de denunciante deste indivíduo, expondo-o assim a represálias.

Deste modo, quis a ironia do destino que este mesmo Parlamento, que há 5 anos aprovou uma diretiva específica e abrangente sobre a proteção dos denunciantes, fosse agora condenado por violar esta mesma diretiva e instado “a tomar todas as medidas necessárias para garantir aos denunciantes uma proteção equilibrada e eficaz contra qualquer forma de retaliação”.

Contudo, não podemos depender exclusivamente dos tribunais - que envolvem altos custos e processos prolongados -, sob pena de hipotecar a vida daqueles que ousam denunciar.

Em Portugal, além de termos aguardado mais de dois anos pela transposição desta Diretiva Europeia para o ordenamento jurídico nacional, são facilmente identificadas inúmeras lacunas na Lei n.º 93/2021, de 20 de dezembro, que estabelece o Regime Geral de Proteção dos Denunciantes de Infrações. Olhe-se, a título de exemplo, para uma questão fundamental: a obrigação de estabelecer canais de denúncia interna.

A legislação determina que empresas com mais de 50 trabalhadores implementem canais de denúncia interna. Todavia, de acordo com dados de 2022 fornecidos pelo Banco de Portugal, essa exigência exclui 98,2% das empresas portuguesas e mais de 50% dos trabalhadores em atividade. Além disso, conforme estipulado na mesma lei, estão isentas de canais de denúncia interna as Autarquias Locais que tenham menos de 10 mil habitantes, ou seja, 40% dos municípios do país.

A esta questão somam-se várias outras questões, tais como: i) a obrigação do denunciante ter motivos “sérios” para fazer valer a denúncia - quando a Diretiva Europeia apenas exige um motivo “razoável”; ii) a predefinição da impossibilidade de apresentação de uma denúncia externa; ou iii) só serem passíveis de serem considerados atos de retaliação se ocorridos até dois anos após a denúncia.

A fraca proteção providenciada aos denunciantes é, de facto, alarmante. Não só porque não promove a condenação de criminosos, mas, sobretudo, porque impede a prevenção e a dissuasão da perpetuação de práticas ilícitas - desde o assédio moral ou sexual (que, lamentavelmente, não se encontram abrangidos), até à criminalidade económico-financeira (na qual se insere a corrupção).

É, por isso, fundamental ampliar os setores e as formas de denúncia, simplificar o processo, garantir uma proteção efetiva contra retaliações (alicerçada na salvaguarda da segurança e do anonimato), fortalecer a fiscalização do cumprimento das normas e reforçar a assistência jurídica e psicológica.

Oxalá esta decisão do TJUE possa inspirar e incentivar o legislador - europeu e nacional - a implementar uma proteção reforçada de quem apenas procura a Justiça e o bem comum, porque quando o legislador não tem juízo, o “bufo é que paga”.


Mestre em Desenvolvimento Internacional e Políticas Públicas Membro Fundador da All4Integrity

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