Quando a Ucrânia surpreende a Rússia

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Em conversa em Lisboa na semana passada com Jim O’Brien, que, como diplomata americano, esteve envolvido nos Acordos de Dayton de 1995 que puseram fim à Guerra da Bósnia, perguntei o que levava quase toda a gente a referir-se à invasão da Ucrânia pela Rússia em 2022 como a primeira guerra na Europa pós-1945, quando é do conhecimento geral que a década de 1990 foi marcada pelas sucessivas guerras na Jugoslávia. “Há uma grande potência envolvida desta vez”, respondeu sem hesitar aquele que foi, até há poucos meses, o secretário de Estado adjunto para os Assuntos Europeus e Asiáticos.

Sem dúvida, O’Brien referia-se à Rússia. E obviamente em termos de capacidade bélica a Sérvia - que até ao fim tentou preservar, pela força das armas, a Jugoslávia contra a vontade dos secessionistas eslovenos, croatas, muçulmanos da Bósnia e albaneses do Kosovo - não é comparável à Rússia. Mas também se pode acrescentar que agora há uma média potência envolvida, neste caso a Ucrânia, que ainda neste domingo terá feito um ataque com drones a instalações militares russas localizadas a grande distância da fronteira, surpreendendo a Rússia.

Tanto em território, como em população, a Ucrânia está entre os grandes países europeus. Certamente não tem o poder da Rússia - e muito menos um arsenal nuclear, do qual abdicou a troco de uma promessa de segurança coletiva que não se concretizou -, mas não esquecer que era a segunda mais importante das repúblicas da União Soviética e ainda hoje tem uma indústria militar que tem servido para Kiev não ser 100% dependente da ajuda de europeus e americanos frente a Moscovo.

O’Brien previu, na entrevista que o DN publicou na sexta-feira, que Vladimir Putin não abdicaria de uma grande ofensiva de verão, mas que a situação ir-se-ia complicar em breve para a Rússia por causa de uma descida do preço do petróleo, dada a produção dos países do Golfo Pérsico e dos próprios Estados Unidos. O antigo número dois da Diplomacia da Administração Biden também deixou em aberto as opções que o presidente Donald Trump poderá tomar em relação à guerra entre russos e ucranianos, sobretudo depois de ter percebido que avaliou mal o que Putin quer.

Trump já compreendeu, sublinhou O’Brien, que nenhuma guerra acaba em 24 horas, ou mesmo numa questão de dias ou semanas, só por que o líder dos Estados Unidos assim o deseja. Não aconteceu sequer com Bill Clinton em relação à Jugoslávia, pois Dayton foi um processo demorado. E uns anos depois a antiga Jugoslávia até viveu outra guerra, dessa feita no Kosovo, província sérvia de maioria albanesa.

Opcões americanas, empenho dos europeus, capacidade russa, determinação ucraniana, tudo se combina para determinar qual será o fim de uma guerra que não só afeta a Europa de uma forma nunca vista depois da Segunda Guerra Mundial (isso também a faz diferente do caso jugoslavo), como tem implicações bem mais vastas - não falo das especulações sobre uso das armas nucleares, mas do envolvimento de soldados norte-coreanos, do apoio chinês à Rússia, da corrida geral aos armamentos, etc., etc.. Claro que também o regresso de Trump à Casa Branca já em 2025, substituindo um Joe Biden que tinha procurado fazer de Putin um pária internacional, também trouxe novos dados à questão, não se percebendo ainda se no caminho de uma solução rápida ou, pelo contrário, prolongando a incerteza .

Volodymyr Zelensky continua a encarnar a vontade ucraniana de se manter uma nação soberana. Na realidade, vastos territórios escapam ao controlo de Kiev e a frente no Donbass está a ser difícil, até, de manter perante a pressão russa. Quanto à Rússia, a tal grande potência, o passeio até Kiev imaginado como possível em 2022 não só não aconteceu, como a guerra arrasta-se, com custos humanos pesados e também impacto direto na economia e nas próprias imagem e relações internacionais do país, apesar dos recentes telefonemas de Trump a Putin.

Se as negociações previstas para esta segunda-feira em Istambul se mantiverem, seria importante que ucranianos e russos chegassem a algum entendimento, ainda que mínimo, abrindo expectativas para futuras concessões. Os Estados Unidos continuam a ser quem mais pressão pode fazer nesse sentido, e veremos se os ataques ucranianos com drones contra a Rússia destas últimas horas fazem alguma diferença. Um cessar-fogo imediato, como o proposto a Moscovo por Kiev, com o apoio de Washington, não resolveria nada, mas poderia evitar que mais gente dos dois países continuasse a morrer.

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