Pânico cultural
Há uma sensação de pânico que passou a contaminar a minha relação com o cinema: um dia destes, alguém vai referir-se a Viagem em Itália (1954), de Roberto Rossellini, proclamando com um sorriso de inocência beata que a personagem de Ingrid Bergman é uma precursora do movimento #MeToo, desse modo expondo o cinismo do marido interpretado por George Sanders, ele que talvez seja mesmo responsável por alguns episódios de violência doméstica.
Quem vai dizer tais disparates? Não sei, a minha presciência não chega tão longe. Ainda assim, atrevo-me a apostar que poderá ser um ou uma “influencer” que sabe tanto de cinema como eu sei do comportamento das ervas daninhas nas encostas do Everest. Ou talvez um ou uma repórter, de microfone na mão, imbuído da certeza de que as suas palavras são lei compulsiva para qualquer mortal que ainda não tenha carregado no botão para desligar o pequeno ecrã.
Tudo é possível — e, agora, a expressão “tudo é possível” não significa o mesmo que significou para a geração que viveu a adolescência nas décadas de 1960/70, mesmo se o preço a pagar pelas ilusões desse tempo feliz continua a assombrar a nossa modesta existência. Tudo é possível, de facto, até mesmo o tratamento de Taxi Driver (1976) como uma muito suspeita exaltação de uma personagem com impulsos violentos. Afinal de contas, vivemos no tempo em que, quase 80 anos depois de Simone de Beauvoir ter publicado O Segundo Sexo, o filme Barbie é consagrado em muitos recantos do planeta como a suprema encarnação da libertação feminina (e esta, lamento informar, não é invenção minha).
Há outra maneira de dizer isto: a crescente violência interpretativa do pensamento “politicamente correto” instaurou a noção historicamente cega e culturalmente miserável (de miséria cultural, entenda-se) segundo a qual as obras de arte — cinema, literatura, teatro, música, pintura, etc. — não têm nada de específico. Segundo a estupidez de tal mantra ideológico, o que define cada obra é apenas a importância mediática que pode ser atribuída aos seus “temas”.
Observe-se, por isso, o outro lado da questão. Vemos, ouvimos e lemos alguns criadores, muitos deles ainda mal saídos da adolescência, a dar conta de um determinado trabalho que fizeram (filme, livro, etc.) e não têm mais nada para dizer a não ser apresentar um rol de “temas” — a exploração das mulheres, a liberdade para as minorias, a denúncia de alguma forma de repressão, etc. — que, supostamente, caucionam tudo e mais alguma coisa, mesmo que o trabalho seja “apenas” artisticamente medíocre. Shakespeare? A peça, senhoras e senhores, é uma denúncia do “bullying”... não há nada a dizer sobre a respetiva encenação, nem sequer, já agora, sobre o valor do texto escrito há mais de 400 anos.
Penso que uma parte significativa da responsabilidade de tudo isto é da minha geração. Sem qualquer ponta de ironia — penso mesmo. Educados na ideia, e para a ideia, de que a arte é capaz de deslocar e transfigurar a nossa percepção do mundo, enriquecendo o nosso lugar na dinâmica desse mesmo mundo, deixámos, ainda que de modo incauto, que tal ideia fosse sendo parasitada por uma outra ideia (mas já não é uma ideia, apenas uma vibração consumista) segundo a qual os objetos artísticos são instrumentos legislativos para repor uma ordem temática e simbólica que, por alguma razão, é tratada como única e inevitável.
No domínio do pensamento sobre a arte (logo, também do pensamento artístico), isso traduz-se numa desvalorização sistemática, sobretudo televisiva, do pensamento crítico — se o mundo se organiza e esgota nos “temas” impostos pelas regras do mediatismo dominante, pensar a arte tornou-se irrelevante. Em termos sociais, isto significa que estamos a fabricar multidões insensíveis às singularidades dos objetos artísticos.
Jornalista