Primeiro estranha-se, depois entranha-se

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Entre as promessas de Trump candidato e as realizações de Trump presidente abriu-se um hiato, que só as muitas perseguições e demissões internas têm vindo a abafar. 

A Groenlândia continua dinamarquesa e sem vontade de mudar, o Panamá continua independente e dono do canal, a paz na Ucrânia, que seria conseguida em poucas semanas com o amigo Vladimir, está cada vez mais longe e com bombardeamentos cada vez mais cruéis; e, por fim, contrariamente ao que fora prometido, os Estados Unidos fizeram uma das mais fortes intervenções militares diretas da sua História recente contra o Irão, em defesa de Israel. 

Há, porém (para além das proibições e perseguições no interior da União, coisa fácil para qualquer autocrata) um domínio, de valor altamente simbólico do ponto de vista nacional e internacional, em que Trump parece estar à beira de conseguir um triunfo significativo. 

Falamos da composição da Coca-Cola. 

A Coca-Cola, proibida entre nós por Salazar, que entendeu o seu subliminar sentido político, foi sempre um símbolo maior dos Estados Unidos. O general Humberto Delgado, numa fase muito inicial da sua candidatura, foi chamado “general Coca-Cola”, pelas suas (presumidas) ligações aos norte-americanos e sempre nos desiludiu, durante a longa noite fascista, termos de nos contentar com a insípida Pepsi-Cola. A publicidade da Coca-Cola foi um elemento mais da cultura americana que, com a reinvenção do Pai Natal, aumentou significativamente o soft power dos Estados Unidos. Quando a proibição entre nós foi levantada, com os muros que abril abriu, cumpriu-se a mensagem visionária de Fernando Pessoa: primeiro estranhámos, depois entranhou-se em nós. 

Mas a Coca-Cola que os Estados Unidos bebem, soubemos agora, é adoçada, não com açúcar de cana de lei, mas com um produto xaroposo derivado do milho. Ao contrário, segundo as melhores informações, a Coca-Cola que nós, portugueses (sempre mimados) consumimos, bem como os mexicanos, continua a ser produzida com açúcar de verdade. 

Donald Trump declarou guerra a essa Coca-Cola enfraquecida, que é produzida no país que a inventou, e apelou ao regresso ao açúcar de cana, favorecendo os produtores da Florida, mas descontentando os próprios fabricantes da Coca-Cola e os cultivadores do milho com que ela tem sido feita.  

Uma vitória de Trump nesta delicada matéria pode bem constituir uma vitória política que irá aumentar e consolidar a sua imagem no mundo e em particular junto dos milhões de consumidores de Coca-Cola. Iremos ter, após um “general Coca-Cola”, um “presidente Coca-Cola”? 

E agora, para algo completamente diferente: 

O fim do JL é uma notícia grave e altamente penalizadora da cultura portuguesa. Não haver mecenato nem apoio estatal que lhe deite a mão mostra o relevo e a consideração que as letras gozam entre nós.  

Isto estranha-se e esperamos que nunca se entranhe. 

 Diplomata e escritor

Diário de Notícias
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