Portugal, um país onde os ismailis se sentem em casa
Lembro-me há muitos anos de ver uma fotografia impressionante numa exposição no Centro Ismaili em Lisboa que mostrava o Aga Khan de um lado de um rio de águas gélidas e uma multidão enorme do outro. Era a fronteira entre o Tajiquistão e o Afeganistão, num primeiro período de regime talibã, e o líder dos ismailis fazia questão de se mostrar aos crentes que viviam num país isolado, garantindo-lhes que não estavam esquecidos. É essa uma das grandes marcas da comunidade ismaili, a solidariedade com os seus, espalhados pelo mundo, mas também com milhões de outras pessoas necessitadas e que não seguem a fé deste ramo minoritário do islão xiita. Por isso a importância do Imamat Ismaili, da Rede Aga Khan para o Desenvolvimento e da Fundação Aga Khan.
A existência do Centro Ismaili em Lisboa e também a capital portuguesa ter sido escolhida para sede mundial do Imamat Ismaili tem muito que ver com a pujança de uma comunidade que se instalou em Portugal vinda de Moçambique no final do período colonial, há meio século. Com raízes na Ásia do Sul, como a grande maioria dos ismailis atuais, a comunidade portuguesa trocou África pela Europa e integrou-se de forma exemplar no novo Portugal democrático, sendo um modelo de islão moderno, em que o estatuto das mulheres contraria quaisquer estereótipos. Os ismailis portugueses, perto de dez mil, apegados às ciências e às artes, destacam-se também pelo espírito empresarial, e são membros da comunidade os donos de empresas como os hotéis Sana e as lojas de vestuário Sacoor.
O ismailismo surgiu no Médio Oriente há mais de mil anos, num período riquíssimo em disputas teológicas no islão, e ainda sobrevivem pequenas comunidades nessa região, mas a grande maioria dos 15 milhões de crentes vivem na Ásia do Sul ou integram uma diáspora que está bem presente em países como o Canadá ou Portugal. O próprio príncipe Karim Aga Khan, que morreu esta terça-feira, era um exemplo da capacidade de integração da comunidade, pois se usava um titulo oferecido pelo imperador da Pérsia a um antepassado seu, era filho de uma britânica, nasceu na Suíça, estudou nos Estados Unidos, e tinha vários passaportes, incluindo o português. Ter morrido em Portugal, com 88 anos, testemunha a forte ligação pessoal ao nosso país, mas também o enraizamento que a comunidade ismaili (também se diz ismaelita) tem na sociedade portuguesa.
Um dia, numa entrevista a uma académica que faz parte da comunidade, perguntei porquê a opção de virem para Portugal a seguir ao 25 de Abril. Respondeu-me falando das incertezas do Moçambique independente, também do apego à língua portuguesa que ao longo das gerações passara a ser a da sua pequena comunidade, mas sobretudo ficou-me na memória uma explicação bem simples: “o mais sensato era irmos para um sítio onde nos sentíssemos em casa”.
O Aga Khan, chefe da comunidade desde 1957, morreu certamente numa Lisboa onde se sentia em casa. Impressiona pensar que este homem era adorado em sítios tão remotos como o Afeganistão, por aquelas pessoas que na tal fotografia se apinhavam junto ao rio para ver ao longe o líder, um homem alto, com um chapéu astracã, que lhes acenava.