Portugal, Reino Unido e um corredor aéreo com síndrome de bipolaridade: ora abre ora fecha

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No dia 3 de Junho com efeitos a 8 do mesmo mês, o governo britânico decretou na sequência de ajustes executados à política de quarentena que Portugal, o único país da União Europeia (UE) que constava da chamada lista de países verdes (em relação aos quais o governo britânico não exige confinamento de dez dias aquando do regresso ao Reino Unido) passaria da referida lista verde para a lista âmbar. A retirada de Portugal, destino turístico acarinhado desde há muito pelo povo britânico, da lista verde causou enorme desagrado aos turistas, à indústria de turismo e ao governo português. Emoção à parte, examinados os factos chegámos às seguintes constatações.

Constatação n.º 1: a decisão britânica faz sentido atentas a variante Delta e a mutação nepalesa.

Segundo Grant Shapps, ministro dos Transportes de Sua Majestade, a despromoção de que Portugal foi alvo teve em conta (i) o aumento da taxa de positividade com isolamento da variante Delta nos viajantes provenientes de Portugal; (ii) que o acréscimo de casos de variante Delta, primeiro detectada na Índia, pudesse agravar a situação epidemiológica; (iii) a possibilidade de que uma mutação adicional da variante Delta ("mutação do Nepal") reduza o efeito da vacina; e (iv) a determinação em reabrir a economia britânica em conformidade com o plano já traçado, isto é, a 21 de Junho (Politico), abertura essa que feitas as contas terá lugar a 19 de Julho.

Note-se que não é a variante que o ministro dos Transportes britânico apelidou de "variante do Nepal" (e que ainda não foi alvo de reconhecimento nem de atribuição de denominação pela Organização Mundial da Saúde) que gera consternação (até hoje nem 40 casos desencadeou em Inglaterra - The Conversation) e sim a aliança epidemiológica entre a variante Delta e a mutação K417N que foi encontrada na variante Beta. Porquê? Porque é a mutação K417N que ajuda perigosamente o vírus a desviar anticorpos neutralizantes, o que significa que pode levar a que as vacinas e os medicamentos contenham anticorpos menos eficazes e aumentar, consequentemente, o risco de reinfecção.

Constatação n.º 2: em Portugal se o turismo rege o PIB o futebol não pode ser rei e a prudência tem de ser rainha.

Em Portugal, o ministro dos Negócios Estrangeiros afirmou via Twitter que lhe escapava a lógica da deliberação britânica e o primeiro-ministro alegou, por sua vez, que embora os recentes ajuntamentos tidos em nome do futebol não tivessem corrido bem haviam revelado o que não fazer (Reuters). Em bom rigor, por entusiasmante que seja visualizar duas equipas, de onze jogadores cada, diligenciando arduamente introduzir uma bola na baliza da equipa adversária, ao longo de 90 minutos ou mais, o cumprimento de normas sanitárias básicas deve tomar precedência numa altura em que ainda combatemos uma pandemia e não um surto, uma epidemia ou uma endemia. Em justa defesa da honra britânica, reconheçamos agora, em face da situação explosiva verificada no nosso país, que as respectivas entidades demonstraram maior e melhor capacidade de análise e antecipação que as nossas.

Constatação n.º 3: as restrições de viagem têm repercussões nefastas no sector turístico que tem de adaptar para sobreviver.

Como sabemos, e por isso a reacção portuguesa acima relatada foi tão veemente, as restrições de viagem, uma medida de saúde pública amplamente usada para limitar a propagação de covid-19, causaram e continuam a causar grande transtorno ao sector turístico. Recordemos, por exemplo, que a 18 de Maio de 2020, 75% dos destinos turísticos a nível mundial tinham as suas fronteiras totalmente encerradas com resultante paralisação quase integral da indústria turística. Claro está que quanto maior o peso do turismo na actividade económica de uma região mais nefastas as consequências. Por exemplo, na Croácia, o sector representou 24% do PIB em 2019 e cerca de 10% em 2020 (Statista) e em Portugal a contribuição do Consumo de Turismo no Território Económico representou 8% do PIB em 2020 e 15,3% em 2019 (Instituto Nacional de Estatística). No âmbito da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), 6,9% dos postos de trabalho advêm do sector turístico, estimando a Organização Mundial do Turismo (OMT) que mais de 100 milhões de empregos se encontrem em risco.

A solução assenta na adaptação em moldes sinergéticos. Tendo a pandemia revelado uma intensa conexão entre o turismo e a saúde pública, porque não optimizar tal relação? O estabelecimento de sinergias planeadas e duradouras entre a saúde pública e o turismo poderá contribuir para o paulatino retorno à normalidade (assim como configurar um investimento na preparação para crises futuras). Por exemplo, a região de Veneto, na Itália, tenciona continuar a atrair turistas garantindo, todavia, distanciamento social, pelo que está a enviar turistas que emergem em Veneza para locais que embora menos conhecidos são classificados como património mundial pela UNESCO (OCDE 2020) e o governo coreano está a apostar no uso de apps que promovem experiências inovadoras, personalizadas e non-contact tourism (que procura evitar lugares lotados e actividades dentro de portas, privilegiando locais espaçosos e ao ar livre) como o Tourism Forecast Service, que faculta informação para cauteloso planeamento de viagens, e o Digital Storytelling Service, que substitui guias turísticos presenciais (OCDE 2020).

Constatação n.º 4: a quarentena associada às restrições de viagem requer uma nova abordagem global com potencialidades locais.

Terminamos com um aviso e com uma recomendação. A política de restrição de viagens em vigor no Reino Unido tem por base o número de casos activos de covid-19. Ora, a imposição de quarentena em função de tal critério pode ter um efeito perverso: a realização de menos testes de diagnóstico ou rastreio com vista à obtenção de menor número de casos activos, com inerentes benefícios para o turismo. Uma abordagem alternativa, que evita o referido efeito perverso, reside no uso dos novos Certificados Digitais Covid (CDC) que são emitidos e reconhecidos pela UE e pelo Reino Unido, permitindo que os vacinados ou recuperados de infecção atravessem fronteiras sem necessidade de quarentena.

Os CDC são indiscutivelmente um passo importante na tão desejada normalização, sem compromissos de segurança. Crucialmente, já aqui dissemos e repetimos, é verdade que os CDC agilizam as viagens para o estrangeiro, sendo redutor, não obstante, perspectivá-los somente dessa forma. Os CDC são multiusos, podendo, ainda, e devendo ser utilizados para viajar dentro do próprio país e propiciando a nível doméstico incentivo à vacinação e à realização de testes e rastreios para aceder mais facilmente a espaços e eventos, com a vantagem de certificação da entidade emissora, minimização dos riscos de falsificação e possibilidade de fácil fiscalização.

Conclusões
Um corredor aéreo com síndrome de bipolaridade? Sim. Contudo a alternância entre abertura e encerramento de fronteiras aéreas e terrestres, entre o cumprimento ou não de quarentena na chegada a certo país e no que toca a outros procedimentos, não é de agora. O mundo mudou no dia 11 de Março, dia em que a Organização Mundial da Saúde declarou pandemia. Nessa semana 348 países procederam ao encerramento das suas fronteiras, em moldes totais ou parciais (The Conversation). Hoje, os procedimentos e restrições de viagem permanecem, variando de país para país e evoluindo em função do contexto epidemiológico.

Lembremos, todavia, que "o caos gera oportunidade" (Sun Tzu, A Arte da Guerra) e que esta crise fornece uma oportunidade para repensar o sector turístico com base no estabelecimento de sinergias entre a saúde pública e o turismo, nomeada e imediatamente, em função dos CDC e das suas abrangentes implicações não apenas a nível global, mas também local. Na verdade, hoje os CDC são o melhor instrumento de combate à pandemia, de tal forma que aqui lhes chamaremos "Como Derrotar a Covid". E com os CDC podemos terminar de vez com a bipolaridade do corredor aéreo entre Portugal e o Reino Unido, deixando uma pergunta no ar: para quê continuar a fechar se temos a chave para abrir?

Patricia Akester é fundadora do Gabinete de Propriedade Intelectual/Intellectual Property Office (GPI/IPO) e Associate, CIPIL,
University of Cambridge.

Filipe Froes é pneumologista, consultor da DGS, coordenador do Gabinete de Crise Covid-19 da Ordem dos Médicos, membro do Conselho Nacional de Saúde Pública.

Os autores escrevem de acordo com a antiga ortografia.

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