Portugal e Uruguai, uma história bonita

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António Correia de Campos era Ministro da Saúde e meu amigo e vizinho. Tínhamos ambos uma casa no Penedo, em Colares, a poucos metros um do outro. Ele já lá tinha casa quando eu cheguei. Na primeira noite que lá passamos, em meados dos Anos 1990, ele bateu à nossa porta com uma garrafa de vinho de Colares na mão e disse, bem-vindos ao Penedo.

Tudo aconteceu por acaso, quando, num jantar em minha casa, me confidenciou que estava em negociações com o Governo do Uruguai, com a finalidade de poder trazer para Portugal médicos desse País, dada a falta de médicos para o INEM. Tinham no entanto um problema político grave: para poderem deixar vir médicos para Portugal, tinham de ter uma contrapartida na Área da Saúde. "O que é que achas que podemos oferecer em troca?"

Acho que não lhe passou pela cabeça que o vizinho tivesse a solução. Em Lisboa, no CHBPT [Centro Hepato-Biliopancreático e de Transplantação], tinham-se feito, em 2007, 136 transplantes hepáticos com belíssimos resultados - tirando o Reino Unido, nenhum centro europeu tinha atingido esses números, e na cirurgia HBP, nomeadamente em cirurgia do Fígado éramos imbatíveis.

“Tens a solução, oferece-lhes a formação das equipas em transplantação hepática - eles não têm essa valência, nós somos dos melhores da Europa, e sendo nós um País pequeno, com poucos recursos, podem tentar copiar-nos. E para além disso não temos a barreira da língua, o ‘portunhol’ serve muito bem para nos entendermos.”

Médicos do Uruguai, interessados na transplantação, andavam há anos isoladamente por todo o Mundo, desde a Argentina, aos EUA e em Espanha a tentar especializar-se em transplantação hepática sem resultados práticos. Desde logo, porque os vizinhos argentinos estavam muito mais interessados em continuar a receber os doentes e os fígados do Uruguai, e a transplantá-los em Buenos Aires, a peso de ouro, do que ajudá-los a ser auto-suficientes. E a realidade dos EUA e em Espanha não era reprodutível em Montevideu.

“Em Lisboa, num ano, podíamos prepará-los em todas as valências, particularmente na cirurgia, oferece-lhes isso, talvez queiram. Será a primeira vez que podem vir juntos em várias especialidades, oferecemos o pacote global. E diz-lhes também que podemos, depois de formados, ir a Montevideu colaborar no arranque do programa.”

Pareceu-lhe logo boa ideia. “Achas que consegues?”

Nem passaram duas semanas quando me telefonou a dizer que a ministra da Saúde ficou entusiasmada, com essa contrapartida, o Parlamento Uruguaio ia certamente concordar.

Em 2008 fizemos 140 transplantes hepáticos e 540 cirurgias HBP fora da transplantação. Eles não queriam acreditar, e, além de aprenderem, foram de uma utilidade extrema.

À medida que iam regressando a Montevideu, despediam-se de mim com grande reconhecimento, e todos sem excepção me disseram que o que encontraram em Lisboa, no CHBPT, excedeu as suas melhores expectativas. 

Nesse ano que cá estiveram, acho que o CHBPT prestigiou o País e como me disseram à partida: “Temos a certeza que, desta vez, vamos começar o programa, mas vamos seguramente ainda precisar da tua ajuda.”

Em Montevideu havia um grande Hospital Universitário, tipo Santa Maria, e um mais modesto, não tão grande, o Hospital Militar, limpo e bem equipado. Ambos queriam alojar o programa de transplantação hepática - era uma luta inglória, de enormes egos e de grandes ódios, uma rivalidade doentia. O Governo não se decidia, iam seguramente perder-se os resultados da aprendizagem em Lisboa.

“Eduardo, precisamos de ti, vem a Montevideu. Só tu podes ajudar a encontrar uma solução.” Era a minha segunda ida a Montevideu e a primeira depois de eles terem estado em Lisboa.

A primeira ida foi decisiva, eu ia “vender” aos potenciais interessados, a nossa oferta de contrapartida. Tinha de apresentar o CHBPT, como estávamos organizados e o que lá fazíamos - ninguém em Montevideu sabia sequer que ele existia. Devo ter sido eficaz, quiseram “comprar”. Falei com a Ministra da Saúde e logo percebi termos ficado com uma grande empatia mútua.

Quando cheguei a primeira vez a Montevideu, foi a nossa embaixadora Luísa Bastos de Almeida que me foi buscar ao aeroporto, e logo explicou toda a problemática local que ia encontrar. Sabia a importância do que estava em jogo, estava muito empenhada em que nosso projecto resultasse. Foi decisiva, diria mesmo fundamental. Os resultados desta primeira ida a Montevideu foram muito positivos, houve logo muitos interessados em vir a Lisboa.

Quando todos, no ano de 2008, acabaram os estágios programados no CHBPT e regressaram, tivemos pena. Foram muito estimulantes, para nós, esses tempos, levámos muito a sério a nossa missão, assumimos totalmente a nossa responsabilidade.

Quando me pediram para ir novamente a Montevideu não me surpreendi, nada avançava. Desbloqueei a escolha do hospital, tinha de ser no Militar.

Não sei quanto tempo passou, mas não foi muito, quando me telefonaram e me disseram: “Eduardo, está tudo preparado, as modificações sugeridas, realizadas, a equipa motivada, quando puderes vir, começamos.”

A 14 de Julho de 2009, o enfermeiro Rui Leal, a anestesista Maria João e eu próprio ajudámos localmente os nossos formandos a iniciarem finalmente o Programa de Transplantação Hepática. Festejaram este ano os 15 anos do programa e convidaram-me para participar. Fizeram, até hoje, 306 transplantes com resultados brilhantes, e fui tratado como um Rei. Abracei o primeiro transplantado com emoção.

O que contribuímos para a existência de um Programa de Transplantação Hepática no Uruguai, e para os seus magníficos resultados, é uma das coisas que ficará sempre ligada à história do nosso CHBPT e de que mais nos orgulhamos. Que bom o meu amigo António Correia de Campos me ter feito, no Penedo, a pergunta fundamental para que isto tudo acontecesse: “Eduardo, preciso de encontrar uma contrapartida para oferecer à ministra da Saúde do Uruguai, para poder trazer para Portugal alguns médicos daquele País. Tens alguma ideia do que possa ser?”

E não é que eu tinha? E não é que resultou?

PS - Não era esta crónica que queria enviar. Tinha outra escrita, relacionada com a problemática actual do nosso SNS. Mas não tive coragem de a enviar, fui cobarde, a idade já pesa. Esta é uma história de Verão, com um final feliz.


Escreve com a antiga ortografia.

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