Portugal e o mundo ou os ideais traídos

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Relês por estes dias dois livros: O Mundo de Ontem, de Stefan Zweig e, simultaneamente, A Nobreza de Espírito, de Rob Riemen (prefácio de George Steiner). Dois livros com subtítulo: “Recordações de um europeu”, o de Zweig; “Um ideal esquecido”, o de Riemen. Vês na televisão, numa rua de Lisboa, dezenas de migrantes encostados às paredes dos prédios, mãos ao alto. Sensível, medindo as palavras, um primeiro-ministro (o “primeiro a servir”, assim ensina a etimologia), diz ser esse um caso óbvio de “policiamento de proximidade”. Entre o ódio e o ressentimento, mergulhados na mais abjecta das sociedades de consumo; entregues a um quotidiano de baixos salários e de assimetrias que abrem crateras no corpo social e que não serão resolvidas a não ser depois de uma disrupção visceral onde vingança e niilismo se unem, o país real bate à porta dos poderosos. Bate-vos à porta com a legítima força dos que têm sido espoliados de qualquer expectativa de vida com sentido. Portugal, como o Mundo, voga nos mares encrespados de um tempo em que todos, presos às redes, estamos enredados na mais mortal das malhas: vive-se na Europa entre a asfixia tecnocrata e a ditadura dos bancos e a anarquia geral, sintoma de que a loucura não pode ser já contida em nenhuma nave que os políticos possam expulsar para ilhéus perdidos. A nau dos loucos é todo o mundo.

Antes de 1914 houve uma Europa que viveu a chamada “belle époque” como ilusão de um tempo de paz perpétua. Hoje sabemos bem que germinavam nos bastidores do poder, entre os filhos dessa Avó da Europa que foi a Rainha Victória, as lutas fratricidas que arrastariam o mundo de ontem para o mundo de hoje. A “belle époque” não deixou de mostrar à saciedade a clivagem entre ricos e pobres, entre oligarquias de poder e as massas que nesse século XIX teriam de se organizar politicamente para fazer face à exploração de um empresariado burguês cruel. Daí o anarco-sindicalismo e as correntes socialistas; daí o pensamento de Taine e de Proudhon, ambos vendo no darwinismo social a explicação para a guerra que viria. Na Europa dos impérios, a indústria da guerra floresceu à sombra, afinal de contas, de ideais que foram sendo sistematicamente traídos. Incapazes, os netos da Rainha Victória, de ver o abismo em que lançariam o continente europeu se viessem a cavar trincheiras, imperou a lógica da morte. Essa inquietação de que fala Zweig e que caracteriza a juventude que fará a I Guerra Mundial, é uma das explicações para o nosso tempo. Somos herdeiros dessa inquietação sem nome. Incapazes de parar, o avanço tecnológico foi proporcional ao nosso abaixamento ético. A Europa acaba aí: em 1918. É uma história de opressão sobre os povos trabalhadores que tem na Revolução de 17 o seu brutal emblema. Leia-se: a mesma crónica da carnificina em que o “homem lobo do homem” é não uma metáfora para uma forma de ser e de estar, mas a verdadeira identidade das sociedades tecnológicas, maquinais, bélicas, ultra-competitivas, dominadas por poucos para escravização de quase todos.

Também no pós-1945 se pensou, não obstante as “guerras por procuração” que mapearam a “Guerra Fria”, que viveríamos uma certa paz perpétua. Apesar de a guerra nunca ter sido fria e a ameaça nuclear ter, por várias vezes, sido uma realidade de facto, a verdade é que ainda foi possível conter a inevitável Hidra de mil cabeças: os interesses do complexo industrial-militar e da indústria farmacêutica. O discurso de John Kennedy, “The New Frontier”, na senda dos avisos de Eisen- hower, expôs a mecânica do mercado nascido depois de 45: defender de uma vez para sempre as castas que, do Ocidente ao Oriente, detêm a riqueza mundial. Do assassinato de Kennedy e de Luther King, do heroísmo de Mandela à morte de Olof Palme; de Robert Kennedy aos anónimos resistentes das causas sociais que morrem todos os dias na defesa de uma sociedade mais justa, livre e democrata, uma frase de Zweig sintetiza-nos: o que distinguiu 1914 de 1939 foi que em 14 a palavra ainda tinha um poder e em 1939, no tempo da “mentira organizada”, já nenhum poema, livro, artigo conseguia produzir o menor efeito. Em 1914, em 1918, depois em 39, “a consciência moral do mundo estava cansada e exaurida”. Antes de 1914, “reagia, veementemente, a qualquer mentira declarada, a qualquer afronta ao direito internacional e humanitário, com todo o vigor de uma convicção transmitida ao longo dos séculos.” (p.283).

E hoje? Assistimos, no conforto dormente dos nossos sofás e enquanto Trump não declara o fim da NATO (a saída dos EUA desse organismo de guerra), à perpetuação dos interesses das oligarquias. Ideais traídos: no mundo e em Portugal. Ou os oligarcas lançando para o caos da ingovernabilidade as democracias neoliberais… Onde já vimos isto? Riemen e Zweig podem dizer-nos onde… e o que sempre acontece quando as democracias atraiçoam os povos. Sim: porque naquela rua de Lisboa foi o povo que foi traído. Nós todos. Não só as comunidades migrantes. Fechas-te em casa. Regressas aos livros… “cerca-te de muros quem te sonhas”.

Escreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfico.

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