Portugal e Marrocos: relembrar 1774
Tal como a conquista de Ceuta por D. João I em 1415 surpreendeu tudo e todos e iniciou o Império Português, também a forma de abandono de Mazagão em 1769 foi surpreendente, pois D. José tratou de enviar a população para o Brasil, fundando na Amazónia uma Vila Nova de Mazagão. Terminou assim uma presença portuguesa em Marrocos de mais de dois séculos, que deixou muitas marcas na nossa História, desde o episódio do Infante Santo à morte de D. Sebastião em Alcácer Quibir, passando pela perda de um olho por Camões. E com o fim dessa presença que se pode chamar de colonial, criaram-se as condições para uma nova relação, oficializada no Tratado de Paz, Navegação e Comércio em 1774 entre os reinos de Portugal e de Marrocos. Segunda-feira, em Lisboa, no Ministério dos Negócios Estrangeiros, os 250 anos desse tratado serão assinalados numa cerimónia de emissão de selos conjunta pelos CTT e a Poste Maroc.
A relação luso-marroquina atravessa hoje um excelente momento, e a vários níveis. Não só os negócios e a troca de investimentos estão em crescendo, como os dois países, mais a Espanha, apresentaram uma candidatura conjunta à organização do Mundial de Futebol de 2030. No ano passado, o primeiro-ministro marroquino, Aziz Akhannouch, esteve, aliás, em Lisboa para uma cimeira com o então homólogo português, António Costa, na qual foi decidido a elevação da relação bilateral a “Parceria Estratégica”. Naquele que foi o 14.º encontro de alto nível entre os dois países, Portugal reiterou o seu apoio à iniciativa marroquina de autonomia para o Sara Ocidental, “enquanto proposta realista, séria e credível, com vista a uma solução acordada no quadro das Nações Unidas.” Uma posição que é também a de Espanha, antiga potência colonial no Sara Ocidental, e que tem uma relação muito mais atribulada com Marrocos, por causa de questões como a migração ilegal, o tráfico de haxixe e a soberania sobre Ceuta e Melilla. O primeiro destes dois enclaves passou para a soberania espanhola durante o período filipino em Portugal, por isso a cidade é hoje espanhola apesar de a sua bandeira ter as quinas.
Se, ao contrário do que muitas vezes se diz, Rabat não é a capital mais próxima de Lisboa (é Madrid, por umas dezenas de quilómetros), Lisboa é, de facto, a capital mais próxima de Rabat, em linha reta. E o estatuto de nosso vizinho do Sul atribuído a Marrocos faz todo o sentido, razão pela qual é importante ter especial atenção ao que se passa logo ali abaixo do Algarve, depois de se atravessar um pedaço de Atlântico. E não falo só por interesse turístico, por muito fascínio que sintam os portugueses por Fez ou Marraquexe, ou até El Jadida, a antiga Mazagão, onde a cidadela portuguesa é património mundial da Unesco.
A estabilidade e o desenvolvimento de Marrocos, país antigo que foi o único no Norte de África a nunca ser conquistado pelos otomanos, é do interesse estratégico de Portugal, e também da Europa no seu conjunto, como prova o novo Tratado de Amizade, Cooperação e Boa Vizinhança assinado por Lisboa e Rabat em 1994 e o importante acordo de associação com a UE, que entrou em vigor em 2000. Também ao nível dos 27, Marrocos é um parceiro estratégico.
Durante a Primavera Árabe, o caos previsível das ambições populares de mudança que se via de país para país foi evitado numa inteligente jogada de antecipação de Mohammed VI, o monarca que este ano celebra 25 anos de reinado e que tem um papel essencial como garante da estabilidade. Uma nova Constituição, mais avançada, foi na época aprovada, e o rei não se opôs em nome da democracia à formação de um Governo encabeçado por um partido islamita, que veio, porém, a mostrar-se incapaz de gerir um país como Marrocos, de quase 40 milhões de habitantes, com uma economia das mais diversificadas de África, mas ainda com desigualdades regionais e sociais por resolver. O atual primeiro-ministro, Akhannouch, no poder depois das eleições de 2021, é um homem de negócios de centro-direita, com vasta experiência como ministro e tido como próximo de Mohammed VI, um monarca constitucional sim, mas com um poder sem paralelo nas modernas monarquias europeias.
Sobre Mohammed VI, que desde o momento em que sucedeu ao pai, Hassan II, prometeu uma modernização da forma de governar, é interessante o que diz Tahar Ben Jelloun no seu Dictionnaire Amoureux du Maroc: “dotado de uma grande capacidade de escutar e de imaginação, Mohammed VI fez pacientemente de Marrocos um país emergente, o que gerou algum ranger de dentes de certos dirigentes europeus.” E acrescenta, em tom polémico, o escritor franco-marroquino, em defesa da monarquia: “nenhuma república árabe tornou o seu povo feliz e próspero.”
O soberano marroquino, que como comendador dos crentes tem um papel importante na preservação do islão moderado que é tradicional no país, pertence à dinastia alauita, que reina em Marrocos desde meados do século XVII. Foi, pois, um antepassado seu, Mohammed III, que assinou o tratado luso-marroquino de 1774 com D. José I de Portugal. Um sábio diplomata esse Mohammed III, pois em 1777, autorizando os navios com bandeira americana a usar os portos do reino, fez de Marrocos o primeiro país a reconhecer de facto os Estados Unidos da América, ainda neste século XXI um grande aliado.