Por quem ainda não tem direito a ter direitos

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Há, pelo menos, 4,4 milhões de pessoas apátridas no mundo. Ser apátrida significa não ter nacionalidade, não ter cidadania. E se, como dizia Hannah Arendt, cidadania é o “direito a ter direitos”, a apatridia nega este direito. Significa, muitas vezes, não ter acesso a algo tão básico como um documento de identificação, uma identidade. E isto tem implicações enormes na vida e no dia a dia das pessoas apátridas, que sem um documento de identificação não conseguem viajar, trabalhar legalmente, ter acesso à saúde, ter conta no banco, arrendar ou comprar casa, registar os filhos.

Há muitas razões que levam a alguém não ter nacionalidade, mas nunca acontece por escolha própria. Seja porque o seu país de origem deixou de existir, seja por um processo de descolonização onde não lhe é atribuída a nacionalidade de nenhum dos dois Estados, seja por regras de atribuição de nacionalidade à nascença do país onde nasceu, seja por ser fruto de uma relação não-reconhecida pelo seu país de origem.

Este é o caso de Maha Mamo, nascida no Líbano e filha de sírios, que foi apátrida durante 30 anos porque o Líbano não atribuía a nacionalidade por nascimento no território e porque a Síria não reconhecia a união do seu pai cristão e mãe muçulmana.

Maha Mamo e os seus irmãos viram-se no limbo burocrático que transformou a sua vida num inferno, como nos contou no seu testemunho na Assembleia da República, que vale a pena ver e rever. Foi a luta de Maha Mamo que levou a que o Brasil aprovasse em 2018 a lei que confere direitos às pessoas apátridas, incluindo o processo de aquisição de nacionalidade, e que permitiu a Maha Mamo, finalmente, ter nacionalidade do país onde vive - o Brasil.

Quando os países onde vivem não lhes conseguem dar resposta, a vida das pessoas apátridas transforma-se num inferno burocrático. É o que - ainda - acontece em Portugal.

Apesar de Portugal reconhecer a existência de pessoas apátridas - até na nossa Constituição, onde determinamos que “os estrangeiros e os apátridas que se encontrem ou residam em Portugal gozam dos direitos e estão sujeitos aos deveres do cidadão português”, só em 2023 é que, por proposta do Livre, foi introduzida na lei nacional a definição de apátrida e instituído o estatuto do apátrida. Este foi um passo essencial, pois só com a existência de um estatuto atribuído é que alguém apátrida pode, na prática, ter os direitos e deveres que lhe confere a nossa Constituição.

Mas falta mais um passo: a regulamentação de como esse estatuto é atribuído, que processos legais e burocráticos é preciso cumprir e qual o caminho para conseguir a nacionalidade portuguesa. É essa regulamentação que, novamente por proposta do Livre, vai ser debatida e votada na Assembleia da República. Para que, finalmente, as pessoas apátridas em Portugal possam ganhar os seus direitos e passar a ter um dia a dia tão igual a alguém com um cartão de cidadão.

Das 4,4 milhões de pessoas apátridas no mundo não sabemos, ao certo, quantas vivem em Portugal. Mas sabemos uma coisa: mesmo que as pessoas apátridas sejam 0,001% da população, a aprovação desta proposta vai resolver 99,999% dos problemas dessas pessoas e garantir que, finalmente, têm direito a ter direitos em Portugal.

Líder parlamentar do Livre

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