Pôr a casa em Ordem
Fui desafiado a escrever uma pequena reflexão no dia de tomada de posse do novo Procurador-Geral da República (PGR), Amadeu Guerra, após a sua tomada de posse. Não vou obviamente fazer análise do seu discurso, vou fazê-lo associando-me ipsis verbis aos votos manifestados pela Ministra da Justiça, Rita Júdice.
Agrada-me a postura da Ministra da Justiça. A sua discrição e rigor, a sua autoridade imanente, a circunstância de ser uma titular da pasta conhecedora do funcionamento do sistema de justiça pelo lado dos cidadãos. Penso que a esse empirismo se deve a sua frase, com que intitulo este texto que, de modo completo, foi “Ninguém melhor para pôr a casa em ordem do que uma pessoa que conhece bem a casa”. Frase bastante corajosa, reconheça-se, sobretudo se vinda da titular da pasta da Justiça. Porque assume sem receios nem hesitações que a casa não está em ordem. E esse é um excelente ponto de partida (que, aliás, silencia muitas vozes que têm erguido em defesa do MP como se ele estivesse a ser alvo de qualquer ataque quando sobre o seu funcionamento se pretende refletir).
Falarei sobre o novo PGR ilidindo algo que caracteriza a sociedade portuguesa que é o preconceito. Sobretudo porque o pior que se pode fazer é condicionar ou limitar aprioristicamente a sua margem de atuação. Aguardemos pelas suas ações.
Amadeu Guerra é alguém cuja competência, seriedade, dedicação à causa pública e qualidade como magistrado são insuspeitas e razoavelmente consensuais. Tal como é razoavelmente consensual que a atuação do Ministério Público (MP) tem sido muitas vezes caracterizada pelo atropelo de variadíssimas garantias processuais e direitos fundamentais dos cidadãos. Sob o título «Normalizando o abuso», Miguel Sousa Tavares escreveu no Expresso que “perante a apatia ou conformismo geral, caminhamos passo a passo para uma sociedade policial, disfarçada de justiceira”. A minha expectativa é que seja da mescla destas apreciações razoavelmente consensuais que se molde o mandato de Amadeu Guerra.
Abusando uma vez mais da singeleza da frase da Ministra da Justiça, interessa colocar como desafio ao novo PGR o que fazer para pôr a casa em ordem.
O primeiro desafio será recuperar a credibilidade e a autoridade do MP.
Não é exigível que as investigações e/ou acusações tenham de redundar todas em condenações, mas é exigível que sejam assentes em indícios e em factualidade que possuam uma robustez à prova de bala. É importante recordar que a função do MP não é a de “acusador público”, mais própria do DA (District Attorney) norte-americano, ao MP compete a descoberta da verdade material, tal como compete a um juiz. Isso distingue os magistrados do MP dos órgãos de polícia criminal e é isso que justifica, aliás, a atribuição da condição de magistrado aos procuradores do MP que não existia até 1974. É de enorme gravidade e falta de consciência das funções do MP a frase várias vezes repetida pela PGR Lucília Gago quando questionada relativamente aos excessos da investigação criminal, em que respondia algo como os arguidos têm depois a possibilidade de se defender nos termos do processo penal… Frase que revela, por um lado, um alheamento absoluto e até desumano dos efeitos que investigações ou acusações levianas podem causar nos cidadãos a elas sujeitas, como revela – peço desculpa por o dizer – ignorância relativamente à função primeira do MP que é de um compromisso firme com a verdade material.
A maior demonstração dessa perda de credibilidade da atuação do MP é o juízo de censurabilidade social que acompanha as investigações. Habituámo-nos a que alguém que fosse sujeito a uma investigação criminal lhe fosse imediatamente associado um labéu irrecuperável na sua reputação. Até porque a prudência investigatória fazia com que a quase totalidade desses casos redundassem em condenações. Hoje não é assim. Hoje há uma enorme desvalorização social da investigação criminal, que é aliás a maior demonstração da sua falta de credibilidade e, consequentemente, de autoridade. Amadeu Guerra revelou estar consciente desta realidade ao referir que “o prestígio do MP não se concretiza com meros processos de intenções ou com discursos de auto-elogio, consegue-se quando a comunidade que servimos sentir que há resultados efetivos ”. Bom augúrio.
Em seguida considero absolutamente fundamental a alteração da cultura do MP.
É importante começar por dizer que não duvido minimamente na seriedade, capacidade, preparação e isenção dos procuradores do MP em Portugal. Tal como espero que os mesmo não se considerem uma classe que não possa ser objeto de reflexões e intervenções vinda do seu exterior. É esta a cultura que tem de mudar no MP.
Desde logo uma correta interpretação da separação de poderes. O poder legislativo, executivo e judicial, estão separados mas são inter-dependentes. O poder legislativo cria as regras que o poder executivo e o poder judicial aplicam. Só pessoas democrática e institucionalmente impreparadas podem considerar pressão ou imiscuição que o poder legislativo queira intervir nas regras de funcionamento do poder judicial. Porque é essa a sua função! Tal como deve o poder judicial interferir, sem qualquer tibieza, no funcionamento dos demais poderes ou dos seus protagonistas sempre que estes atuem à margem das leis. Porque é também essa a sua função. É nesta harmonia que designo de inter-depêndencia que se equilibra o Estado de Direito.
Mas vivemos um tempo que os procuradores do MP, numa atitude de um corporativismo incompreensível, consideram não poder ser questionados nas suas práticas, nas suas ações, nas suas prioridades. Como se se tratasse de uma elite de ungidos cuja atuação não pode ser questionada. Será que se dão conta do quão “Antigo Regime” isto é? É urgente promover uma alteração de cultura interna, de maior abertura, de maior questionamento, de menor enclausuramento. O desafio que, aliás, o próprio Presidente da República fez à classe pugnando pela sua “abertura aos reptos das mudanças indispensáveis”, a necessidade de “mudança de mentalidades” que Amadeu Guerra imprimiu no seu discurso, tendo aliás concluído que “penso que isso está ao nosso alcance e foi por isso que eu aceitei”.
Um dos piores momentos a que assisti na vida democrática (nos antípodas desta postura) foi o abaixo-assinado de 820 procuradores «Em defesa dos cidadãos e da Justiça». Não compreendo como pessoas cultas e formadas, de espírito democrático, não consideram ser possível debater-se o seu modo de funcionamento. Perante reflexões de cidadãos que deveriam conduzir a um debate livre e desempoeirado, com contributos e participações de parte a parte, respondem com um ato corporativo de entrincheiramento, próprio de quem não admite ser posto em causa. Não está bem.
Aliás, a frase do Vice-PGR Carlos Adérito Teixeira, numa intervenção recente no Congresso do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (SMMP) é absolutamente paradigmática. Disse o Vice-PGR que vivemos tempos de “alguma sensação de impunidade, de inquietação social e irascibilidade mediática” em que “o MP acaba por funcionar como um regulador ético-social de defesa da legalidade democrática”, frase que é de uma gravidade tal que porventura o seu autor nem disso se consciencializou e que é reveladora dessa cultura justicialista. Uma frase manifestadora de um Ius Imperium que a lei não atribui ao MP e que diz suficientemente quanto ao tanto que tem que se alterar na cultura do MP.
Citando uma vez mais Amadeu Guerra “O MP ouve sempre as críticas justas e fundamentadas, aceitando-as quando contribuam para melhorar o seu desempenho, para alterar procedimentos e torná-los mais adequados para assegurar a celeridade e a eficiência, ou quando contribuam para facilitar o cumprimento mais efetivo do serviço público que lhe incumbe prosseguir”. Este é o espírito de abertura que se exige, pelo que se aguarda pela passagem do domínio das palavras para a dimensão dos atos.
É ainda fundamental terminar com o princípio da irresponsabilidade decisória que caracteriza a atuação do MP. Porque cauciona a leviandade na atuação. Tema que não entrou nas prioridades elencadas pelo novo PGR.
A ausência de responsabilização provoca alheamento dos impactos concretos que a atuação especulativa da investigação criminal possa ter em cidadãos e no regular funcionamento das instituições. E isto não pode ser tolerado em silêncio por quem se considere democrata.
A chamada «Operação Influencer» não é um processo qualquer. A avaliação da relevância criminal dos indícios conduziu às medidas de coação que determinaram a queda de um Governo eleitos pelos cidadãos. O que não tem problema rigorosamente nenhum verificando-se ou confirmando-se a sua justeza e o seu rigor. Mas quando decisões de tribunais superiores arrasam por completo a robustez e valoração jurídico-criminal dos indícios alegados pelo MP, perguntas têm de ser feitas, consequências têm de existir. E isto não é apenas em proteção dos cidadãos envolvidos. É em proteção da própria credibilidade do MP, além de o ser em proteção do Estado de Direito. Daí considerar ter sido uma ausência notada no discurso.
Um Estado de Direito que se respeita a si próprio não pode permitir que passe sem qualquer consequência uma decisão cuja avaliação porventura ligeira de indícios criminais provoca a queda de um governo eleito pelos cidadãos. Ou isso significará considerar-se estar o MP a viver à margem das regras por que se regem todos os demais cidadãos, o que é obviamente inaceitável.
É igualmente essencial uma mudança de práticas na investigação criminal. Mais respeitadoras dos direitos, liberdades e garantias. Com investigações corretas, leais e sobretudo mais eficientes, com resultados visíveis e atuações compreensíveis pelos cidadãos. Que desincentive os mega-processos que são um nó górdio pelo qual a investigação se enreda na própria teia. Que assegure escrutínio do resultado dessas investigações. Que não utilize as violações cirúrgicas do segredo de justiça como parte da estratégia processual com vista a motivar a condenação social pré-judicial porque isso, além de ilegítimo e ilegal, é uma prática pouco própria de um país com um Estado de Direito sólido como gostámos de sentir ser o nosso.
Sobre este tópico o novo PGR manifestou a intenção de “revisitar as questões relativas ao segredo de justiça … no estudo do regime do segredo de justiça em alguns países e nas boas práticas seguidas por alguns magistrados” manifestando ainda que “as soluções têm que passar pela abordagem das questões criminais, dos direitos, liberdades e garantias e, necessariamente, pelo equilíbrio entre estes aspetos e o direito à informação”.
Nos antípodas do que foi o mandato de Lucília Gago, Amadeu Guerra tem de compreender que a função de PGR é uma função política e não meramente técnico-jurídica.
O que deriva não apenas dos termos constitucionais da sua nomeação como da natureza da sua função. Assumindo o exercício da ação hierárquica que ao PGR compete exercer nos termos da lei. Assegurando a representação do MP perante a opinião pública não permitindo que seja um sindicato a fazê-lo, tal como nos habituámos nos últimos seis anos. Incentivando uma convivência natural com o jornalismo judiciário que existe e deve ser incentivado (até por trazer ao conhecimento das pessoas a complexidade das temáticas jurídicas ou judiciárias), mas condenando de modo firme as divulgações de conteúdos que estejam judicialmente protegidos e cuja proteção compete precisamente ao MP.
Em conclusão:
É essencial para a manutenção do Estado de Direito a existência de um MP atento e empoderado e de forças e serviços de segurança fortes e respeitadas. Para que isso suceda, a obediência ao princípio da legalidade e o respeito pelos direitos fundamentais têm de ser dogmatizados.
Vou por isso manter a minha forma quixotesca de estar na política e considerar que exemplos do passado – como as atuações extra legem do DCIAP durante a sua direção, como as acusações destruidoras de vidas políticas e pessoais no “caso vistos Gold”, como os prazos geriátricos no DCIAP pelos quais foi recentemente aberto inquérito pelo Conselho Superior do Ministério Público – não podem naturalmente motivar uma apreciação apriorística devendo antes ser vistos como uma excelente ponto de partida para melhor saber o que evitar fazer no futuro. Uma oportunidade única e extremamente bem posicionada para, parafraseando uma vez mais a Ministra da Justiça, "pôr a casa em ordem".