Pontos de luz tardios

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A Ucrânia voltou a ver uma luz ao fundo do túnel: mas convém lembrar que, por vezes, o que nos parece ser o renascimento da Esperança pode revelar-se, apenas, como um comboio que de lá longe vem em rota de colisão.

Mike Johnson, que tantas vezes aqui critiquei nos últimos meses, merece, desta vez, rasgados elogios.

Nunca é tarde para se fazer o que é certo - e o cinzento speaker republicano do Congresso fez o que era preciso fazer. Atentemos no que disse Mike Johnson antes da votação de sábado: “Estou aqui a fazer o que acredito ser o que é correto fazer neste momento. Penso que providenciar ajuda letal à Ucrânia é urgente e é crítico para a sua sobrevivência. Não podemos brincar à política com isto. Temos de fazer o que é preciso.”

A grande incógnita reside no facto de só agora, tantos meses depois de impasse no Congresso, a ajuda à Ucrânia tenha sido desbloqueada. Importa calcular quantas mortes civis ucranianas existiram por estes quatro meses de inação. E qual o grau de perda de capacidade estratégica das tropas ucranianas no terreno, perante a manifesta superioridade de meios russos - e se será possível recuperar das perdas sofridas neste sombrio período.

O que terá levado Johnson a tão grande mudança de posição, ele que, enquanto mero congressista do Louisiana, tinha votado sempre contra o apoio a Kiev?

A resposta não é simples. Poderá, no entanto, decorrer da conjugação de dois fatores, aparentemente independentes um do outro (mas não contraditórios).

Por um lado, Mike Johnson terá sentido o peso histórico que recaía nos seus ombros. Já se fala em Washington no “momento Churchill” do atual speaker. Não iria tão longe, mas atribuo muito mérito à decisão corajosa do líder da Câmara dos Representantes ao permitir a votação de um pacote que sabia, à partida, vir a redundar numa profunda divisão na bancada republicana.

Johnson e Trump: mais articulação que afastamento

Acresce uma outra possível explicação para a redenção de Mike Johnson: esta terá sido uma decisão não à revelia de Donald Trump, mas em articulação com Donald Trump. O ex-presidente e futuro nomeado presidencial republicano tem lançado a ideia de que, em vez de enviar ajuda a fundo perdido a Kiev, a solução deverá passar por empréstimos. Ora, boa parte do pacote aprovado no sábado, que o Senado certamente ratificará esta terça, baseia-se, precisamente numa lógica de land lease.

Trump é um populista que, mais do que seguir convicções profundas, está sempre atento ao que o pode beneficiar ou prejudicar. Sobre a Ucrânia, não há no eleitorado americano uma enorme onda de apoio sem contrapartidas - mas também não existe uma maioria evidente que reivindica uma paragem total e completa do apoio a Kiev.

Esta aprovação permite a Trump seguir com o argumento de que, ao contrário do que muitos lhe apontam, não é um putinista disfarçado, não deseja a vitória da Rússia, pretende ter uma palavra no futuro da Ucrânia e, afinal, até se enquadra numa área da direita americana que compreende a importância da liderança global - mas já não a qualquer preço.

A menos de 200 dias da eleição geral, Trump ganha espaço para apelar a setores independentes ou mais moderados, nos quais pretenderá disputar o voto com Biden.

Republicanos entre a redenção e a rebelião

Chega a ser difícil de analisar, dentro de um quadro de suposta racionalidade (que há muito se esvaiu da política americana), o comportamento do Partido Republicano desde a invasão russa da Ucrânia.
A 24 de fevereiro de 2022, os republicanos foram os primeiros a exortar, no Capitólio, à necessidade de se defender a Ucrânia da agressão de Moscovo, em nome da Liberdade e da defesa da Democracia. Mas bastaram poucos meses para irem crescendo, votação a votação, bolsas de resistência no GOP (Grand Old Party), sempre ligadas a setores extremistas, ultranacionalistas e, nalguns casos, até conspiracionistas e vulneráveis à narrativa russa.

Na semana passada, em jeito de desabafo sob a capa de alerta, o congressista republicano do Ohio, Mike Turner, líder do Comité de Inteligência da Câmara dos Representantes, apontava: “Há colegas meus da bancada republicana a difundir propaganda do Kremlin nesta casa.”

A ala republicana ficou dividida na votação de sábado: 101 a favor e 112 contra. A fação extremista ameaça depor Johnson por ver qualquer aproximação entre os dois partidos como uma traição.

Marjorie Taylor Greene (Geórgia) e Thomas Massie (Kentucky) preparam a rebelião. Mas calma: uma parte dos republicanos “trumpistas” discordam da deposição de Johnson por considerarem que tão perto das eleições de novembro seria contraproducente para os seus interesses eleitorais. Foi essa a posição manifestada pelo congressista Ralph Norman (Carolina do Sul).

Vender ativos russos e transferir os fundos para Kiev

O Congresso norte-americano aprovou também o Repo Act, que tem como ideia-base a de que a agressão russa na Ucrânia constitui uma violação de regra imperativa.

Os Estados têm o dever de fazer tudo o que estiver ao seu alcance para fazer cessar essa violação. Ora, é o caso do confisco dos bens russos.

Ou seja: o Congresso autorizou, com grande apoio bipartidário, a venda de ativos russos e posterior transferência para Kiev dos fundos arrecadados nessa operação. Esperemos que a União Europeia possa, agora, seguir o exemplo americano.

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