Políticos, transparência e obrigações

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O exercício de funções públicas, em especial de funções políticas, está sujeito a regras especiais no que diz respeito a exclusividade de funções profissionais, limitações de titularidade de direitos, obrigações declarativas e prevenção de conflitos de interesses. É assim há décadas e não uma reclamação episódica da atualidade, tendo-se verificado uma evolução do regime legal aplicável há bem poucos anos, pela Lei n.º 52/2019, de 31 de julho, lei que nos últimos cinco anos, aliás, já teve mais seis alterações votadas no Parlamento, a última delas no ano passado. Poucas matérias terão sido objeto de tantas alterações legislativas em tão pouco tempo.

Existe neste momento uma regulação detalhada e obrigações de comunicação pública de elementos exaustivos sobre a vida profissional, as atividades desenvolvidas e o património, pessoal e familiar, de um político, antes, durante e após o exercício do seu mandato ou do seu cargo. As regras são especialmente exaustivas, deve dizer-se, e é preciso um grau especial de atenção na recolha e apresentação da informação exigida para não as incumprir, mesmo que involuntariamente.

Nas últimas semanas, elas voltaram às notícias, a propósito de quotas de sociedades comerciais e exercício de funções de gerência por parte de titulares de cargos políticos. Neste momento, os titulares de cargos políticos e de altos cargos públicos que, nos últimos três anos anteriores à data da investidura no cargo, tenham detido pelo menos 10% ou mais de 50 mil euros de capital “em empresas (...) ou tenham integrado corpos sociais de quaisquer pessoas coletivas de fins lucrativos não podem intervir: a) Em procedimentos de contratação pública de fornecimento de bens ou serviços ao Estado e a outras pessoas coletivas públicas aos quais aquelas empresas e pessoas coletivas por si detidas sejam opositoras; b) Na execução de contratos do Estado e demais pessoas coletivas públicas com elas celebrados; c) Em quaisquer outros procedimentos formalmente administrativos, bem como negócios jurídicos e seus atos preparatórios, em que aquelas empresas e pessoas coletivas sejam destinatárias da decisão, suscetíveis de gerar dúvidas sobre a isenção ou retidão da sua conduta, designadamente nos de concessão ou modificação de autorizações ou licenças, de atos de expropriação, de concessão de benefícios de conteúdo patrimonial e de doação de bens”.

Por outro lado, no exercício do cargo, os titulares de cargos políticos, por si ou nas sociedades em que exerçam funções de gestão, e as sociedades por si detidas em percentagem superior a 10% do respetivo capital social, ou cuja percentagem de capital detida seja superior a 50 mil euros, “não podem: a) Participar em procedimentos de contratação pública; b) Intervir como consultor, especialista, técnico ou mediador, por qualquer forma, em atos relacionados com os procedimentos de contratação referidos na alínea anterior”.

Este mesmo regime aplica-se ao próprio, ao cônjuge, unido de facto, descendentes, ascendentes e colaterais até ao 2.º grau, bem como a sociedades de profissionais, como as sociedades de advogados. Outras obrigações seguem-se, para o período de três anos após a cessação de funções no cargo, no mesmo sentido.

É suficiente? Não chega? É todo um regime com o efeito de evitar que quem tenha uma vida feita em empresas ou fora de cargos públicos aceite um cargo público, pelos impedimentos de atividade criados, desde logo, para as suas próprias empresas e da sua família... Naturalmente que é necessária transparência e evitar suspeitas, danosas só por si para a causa pública e para o próprio. Mas é impossível clamar por “melhores políticos” e pela autonomia destes em relação a cargos públicos e, ao mesmo tempo, limitar as suas compensações e tornar muito difícil ou uma mera exibição de riqueza pessoal ou de ego desmedido o exercício dessas funções, a par do voyeurismo desmesurado e da maledicência coletiva. Outra coisa, diferente, é suspeitar-se que um político beneficia ilegitimamente antigos clientes ou pretende beneficiar pessoalmente de contratos que, em violação das regras, estabeleça ou permita. Como o demais crime, deve ser reportado ao Ministério Público.

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

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