PNS e a política das audiências: o c(h)oro que dá gozo

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Está por demonstrar em que medida o debates políticos influenciam votações, mas é inegável que se tornaram conteúdos apetecíveis na disputa por audiências televisivas.
De outra forma, não teríamos 28 frente a frente em 15 dias, e sucessivas horas de emissão dedicadas a debates sobre os debates.

Neste reality show das Legislativas 2024 - em que excluo da contabilidade o confronto entre forças sem assento parlamentar -, não falta sequer o absurdo de termos jornalistas mascarados de líderes partidários, numa tentativa de sátira denominada Desafio Eleitoral, inserida na última gala de aniversário da TVI.

Fica vincado, uma vez mais, que o que importa mesmo é entreter e não informar.
Portanto, que se lixem os factos, quando o que apetece mesmo é brincar aos fatos. E, já se sabe, não podemos levar a vida tão a sério. Nem a política ou os políticos, entenda-se.

Vai daí, em vez de se desclassificar quem mente descaradamente e agride gratuitamente, destaca-se a ‘qualidade’ da performance, num esvaziar programático onde até a cor de uma gravata entra em cena como elemento digno de nota.

Nesta era da política das mentiras e da ficção eleitoralista, há mesmo quem entenda que, em nome do entretenimento, vale tudo, inclusivamente vender a tragédia da perda de um filho como um espectáculo de comédia televisiva.

Aconteceu na emissão de domingo do Isto é gozar com quem trabalha, em que, de uma forma que considero inaceitável e deplorável, se manipularam palavras de Pedro Nuno Santos (PNS) para fabricar uma “piada”.

Ignorando levianamente o contexto das imagens reproduzidas, a equipa desse formato de humor entendeu admissível descolar as lágrimas do secretário-geral do PS das memórias que as provocaram - no caso, um aborto -, e colá-las a uma norma de supervisão parental para uso de gadgets.

“O Sebastião durante a semana não pode mexer nem no iPad, nem nos telemóveis. É uma regra que nós temos”, ouvimos PNS dizer, enquanto limpa o rosto com as mãos. O excerto, apresentado no espaço conduzido por Ricardo Araújo Pereira a partir de imagens retiradas do programa Alta Definição, é antecedido de uma partilha sobre um projecto de vida interrompido.

“Nem sempre se consegue tudo. Queríamos uma família maior e nunca conseguimos”, disse o líder socialista, recuando a um dos episódios muito desafiantes que viveu em família, enquanto o seu filho, Sebastião, pedia um irmão.

PNS emocionou-se nesse e noutros momentos da entrevista a Daniel Oliveira e, acredite-se ou não na autenticidade do choro, a dor do seu contexto merece no mínimo respeito.

Não se trata aqui de reeditar um duelo recorrente entre limites para fazer humor e limitações de sentido humor. É muito para além disso.

Desconheço se alguém da produção do Isto é gozar com quem trabalha assistiu à entrevista de PNS na íntegra, mas, por aquilo que foi exibido, parece que se limitaram a “caçar” todas as cenas de choro, para entoar o clássico coro de políticas de masculinidade. Afinal, homem que é homem não chora! Logo, se PNS é homem e chorou, isso não só é informação relevante como material de entretenimento. Ao estilo “quanto mais choras, mais gozo de ti”.

É o humor a imitar a mais baixa definição de política.

Talvez fosse útil escutar com mais atenção o homem que se apresenta como companheiro da Catarina e pai do Sebastião.

“Sempre tivemos imensa preocupação de nunca reprimir o que se sente, e o Sebastião vive as suas emoções na plenitude”, assinalou PNS na entrevista ao Alta Definição, colocando o amor como algo central na educação de uma criança.

Ao mesmo tempo que partilha como escolhe construir a vida familiar, o líder dos socialistas estabelece fronteiras com a agressividade que associa à vida política, comprometendo-se a esbatê-las. “Se calhar, temos de assumir cada vez mais as nossas vulnerabilidades.”

Eu não tenho quaisquer dúvidas de que temos o dever de o fazer. Desde logo, para começarmos a reconhecer que o choro é uma emoção humana tão válida quanto o riso e, como tal, está presente em qualquer género. Deixemos, por isso, de associar o choro a uma expressão intrinsecamente feminina, e de reprimi-la no universo masculino.

Insistir nessa premissa produz um impacto humanamente demolidor, têm alertado vários especialistas em Psicologia, nomeadamente William Pollack.

Autor de obras como Real Boys: Rescuing our sons from the myths of boyhood (Rapazes de verdade: resgatando os nossos filhos dos mitos sobre ser rapaz), Pollack não hesita em estabelecer uma relação entre repressão de emoções e explosão da violência: “Se não deixarmos os nossos miúdos chorar lágrimas, eles vão acabar por chorar balas.”

A quem é que isto dá vontade de rir?

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