Peter Handke e as imagens que perdemos
Um dos últimos livros publicado pelo austríaco Peter Handke foi recentemente traduzido em francês: Ma Journée dans l’Autre Pays (Gallimard, 2024) é isso mesmo, uma viagem num cenário que corresponde a “outro país”, protagonizada por um homem assombrado por demónios (o subtítulo é “Uma história de demónios”), falando uma língua desconhecida que perturba e inquieta todos aqueles que com ele se cruzam. Em boa verdade, o homem/narrador não se recorda do seu comportamento de rutura, não conserva qualquer “traço de memória” daquilo que lhe aconteceu - como dizem os familiares que o ajudam a reconstituir os factos vividos, ele era um ser “sem consciência”.
Combinando a máxima transparência com um mistério radical, a escrita de Handke decorre da mais antiga vocação do próprio ato de escrever: não reproduzir o mundo tal como ele existe (se é que sabemos como é que ele existe...), mas viver a linguagem como um acontecimento singular que desloca as fronteiras desse mesmo mundo. E se o narrador consegue contar a sua própria história, isso depende do aparecimento de uma personagem a que ele chama o “bom espectador”. A saber: alguém que lhe devolve a importância do seu olhar, como num espelho, demarcando-se do comportamento de “muitos espectadores atuais” que se limitam a servir um “mercado” ou o “poder”.
Narrativa muito breve, com cerca de seis dezenas de páginas, Ma Journée dans l’Autre Pays trouxe-me memórias de um livro bem diferente, dez vezes mais longo, em que Handke conta a história de uma mulher jovem, líder de um império financeiro, que viaja ao encontro do escritor a quem ela própria encomendou a sua biografia: La Perte de l’Image (Gallimard, 2004). Ambos os livros reagem a um tempo de vulgarização do ato de ver, no limite reduzindo-nos a avatares de um mundo extenuado na proliferação de imagens e no esvaziamento dos olhares.
Estamos perante esse fenómeno trágico que o título condensa: “a perda da imagem”. A heroína de Handke reconhece que as imagens são “indispensáveis à transmissão do mundo” e, mais do que isso, ao “sentimento da existência”. O que não exclui um visceral pessimismo: “(...) assistimos durante o século passado a uma exploração abusiva das imagens, a um desperdício sem precedente. E os recursos, perdendo-se, acabam por se esgotar - o mundo das imagens tornou-se inteiramente cego, surdo, insípido, monótono, e nenhuma ciência tem hoje poder para lhe devolver o colorido.”
A afirmação podia servir de observação crítica de alguns modos atuais de fazer televisão. São modos embrenhados em ciclos de repetição das mesmas imagens, ao serviço da retórica de “especialistas” que falam de diversos assuntos (política e futebol, sobretudo) como se fossem sacerdotes do futuro que nós, pobres mortais, ansiamos por conhecer. Daí também, inevitavelmente, a associação da escrita de Handke aos filmes que realizou - penso, de imediato, em A Mulher Canhota (1977), com Edith Clever -, ou àqueles que escreveu para Wim Wenders, com destaque inevitável para As Asas dos Desejo (1987).
O leitor que conhece As Asas do Desejo lembrar-se-á que é um dos derradeiros filmes em que vemos Berlim ainda dividida pelo Muro. As personagens principais - dois anjos, Damiel e Cassiel, interpretados por Bruno Ganz e Otto Sander, respetivamente - circulam entre Leste e Oeste, num espaço imponderável, sem fronteiras, em que conseguem escutar as vozes interiores das personagens anónimas que circulam pelas ruas. Dir-se-ia que é um filme contra as imagens cruéis da divisão que o Muro materializa, já que o vemos, numa evidência muito realista, mas transfigurado pelos poderes imponderáveis de Damiel e Cassiel. Ou como pergunta Damiel no célebre monólogo de abertura, evocando o tempo em que “a criança era uma criança”: “Porque é que eu sou eu, e não tu? Porque é que estou aqui, e não ali? Quando começou o tempo, e onde acaba o espaço?”
Jornalista