Pedro Sánchez e as razões de Estado
Sitiado por uma torrente irrefreável de corrupção, nepotismo e tráfico de influências no PSOE, no Executivo e na própria família, o presidente de governo espanhol Pedro Sánchez optou por se arrastar no poder.
As legislaturas são para cumprir, afirma, muito embora tenha já antecipado eleições duas vezes, em 2019 e 2023. Não se veja aqui qualquer incoerência. Em Sánchez, as convicções evanescentes são o maior indicador de constância.
Será nos momentos de agonia que mostramos a nossa essência e o chefe do Executivo espanhol mostrou a sua: reconhecendo a gravidade do que se sabe – e, porventura, do que ainda falta saber –, recusou marcar eleições para impedir que a direita radical chegue ao poder. Por outras palavras, votar é perigoso e compete aos líderes iluminados proteger os eleitores de si próprios. Enfim, são razões de Estado.
Os casos conhecidos são mortíferos para o Executivo. Não apenas pela gravidade e abrangência que têm, sem precedentes em Espanha, o que é dizer muito, mas por eliminarem por completo a razão de ser do governo. Recordemos que Sánchez chegou ao poder em 2018 graças a uma moção de censura – a primeira aprovada na história da democracia espanhola – assente na crítica impiedosa à corrupção que alastrava à época no governo do Partido Popular, de Mariano Rajoy.
José Luis Ábalos, deputado do PSOE, subiu à tribuna do parlamento para vergastar a direita: “A decência deve ser algo essencial”. O PP afundara “a dignidade a limites insuspeitos”. Perante a indecência, o PSOE seria o bastião da “ética pública e da exemplaridade” de conduta. Aliás, Ábalos enalteceu o “código ético” dos socialistas, em contraste absoluto com o PP, que “nem sequer teve a decência política de se demitir.” Isto é, a moção de censura apresentava-se por razões de Estado.
Ábalos chegou a ministro e seria durante muito tempo o braço-direito de Sánchez no partido. Avançando até 2025, ficamos a saber que está no epicentro da “organização criminosa” – palavras da Guardia Civil – criada no seio do PSOE. Alegadamente, incorreu em vários crimes de corrupção e peculato, com múltiplas ramificações que envolvem outros personagens do partido e do governo. Recorreu
por sistema a serviços de prostituição, tendo até arranjado emprego a algumas destas senhoras em empresas públicas – uma teve mesmo a possibilidade de residir num apartamento caríssimo em Madrid, pago por empresas envolvidas nos esquemas de corrupção. Ábalos estabeleceu também relações políticas e comerciais ilícitas com o regime venezuelano. Tudo isto com o apoio de um conjunto picaresco de indivíduos, entre as quais um fiel assessor que, antes de o ser, era porteiro num prostíbulo.
Indo ao que interessa, a permanente invocação dos superiores interesses nacionais é um pilar da governação de Sánchez, sobretudo para voltar com a palavra atrás em matéria de princípios. Tudo o que jurou nunca fazer, sob pena de comprometer Espanha, a democracia e o Estado de Direito, fez: indutos e amnistias a separatistas catalães; acordos de governo com a esquerda radical populista; acordos parlamentares com a extrema-esquerda basca; colocar as condições de governabilidade do país nas mãos de separatistas. Lesou a Constituição, atropelou a separação de poderes, minou o consenso social e político que funda a democracia e deitou fora o património histórico do PSOE porque as razões de Estado a isso obrigaram.
Nicolau Maquiavel designou como ‘razão de Estado’ o uso de meios excepcionais para preservar o Estado em situações de necessidade. Mas, como bem lembrou o espanhol Baltasar Gracián y Morales, sacerdote jesuíta e filósofo do século XVII, as razões de Estado escondem com frequência razões de estábulo.
Politólogo.
Escreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfico.