Passos atrás, com ideologias de mentira

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Durante demasiado tempo, a vida da primeira jornalista portuguesa passou-me ao lado. Encontrei Virgínia Quaresma apenas em 2019, no artigo Feminismo negro em Portugal: falta contar-nos, assinado por Cristina Roldão, no Público. Da mesma forma, foi aí que me cruzei com Georgina Ribas e Fernanda do Vale.

Anotei todos os nomes e, de pesquisa em leitura, fui constatando a dificuldade de saber mais. Nesse processo, confrontei-me com políticas de invisibilização e silenciamento, e, pela primeira vez na vida, consegui nomear múltiplas exclusões, e perceber que nunca estive sozinha nos estranhamentos e questionamentos.

Perdi a conta às páginas de livros, teses académicas, notícias e vídeos que consumi para me reeducar, num contínuo de aprendizagens que permanecem em actualização. Não apenas sobre a violência que mais vivo na pele - o racismo -, mas sobre todas aquelas que violam Direitos Humanos.

Por isso, o facto de apenas há meia dúzia de anos ter começado a ler sobre identidade de género, e de só mais recentemente me ter iniciado na aproximação a vivências trans, nunca me fez questionar a sua existência, e menos ainda o direito de serem exactamente quem são. Pelo contrário, a minha intervenção de combate ao racismo ensinou-me, desde o primeiro momento, a questionar as estruturas de poder, tão blindadas de privilégios quanto avessas a qualquer expressão não-normativa.

Manda a norma curricular, por exemplo, que se insista nos “Descobrimentos”, que não se reconheça que o 25 de Abril começou em África, ou não se estude o contributo de líderes históricos como Amílcar Cabral.

Diante desses e outros esvaziamentos, não falta quem prefira fechar-se na estreiteza de que sabemos exactamente o que há para saber.  Logo, tudo o que saia do regime de pré-adquiridos é entendido como um ataque ao património comum.

Nos antípodas, há quem, diante de novas informações, opte por questionar o que conhece, e até rever antigas posições.

Assumindo o simplismo, diria que andamos divididos entre esses dois grupos: os que vivem orgulhosamente presos no passado, acreditam possuir o monopólio do conhecimento e vêem-se como mensageiros e defensores da verdade; e os que reconhecem a mutabilidade da vida, a importância de furar as “bolhas” de afinidade e proximidade, e de analisar velhas narrativas - históricas e não só -, à luz do acesso a novas fontes e realidades.

As fronteiras entre uns e outros, especialmente perturbadoras no confronto político, acentuam-se à medida que avançamos - ou lutamos para avançar - na conquista de mais direitos para mais pessoas.

É nesse distanciamento que se forjam classificações de menorização da diferença, enquanto se inventam ameaças. Assim nasceu a “ideologia de género”, uma espécie de bicho-papão para adultos que, enfiados nos seus armários, expressam o medo de sucumbir a novas orientações, quando confrontados com a pluralidade da natureza humana.

Vai daí, projectam nas crianças e nos jovens os seus receios, insistindo na mentira de que os mais novos andam a ser endoutrinados por uma tal de extrema-esquerda, e que é preciso travar essa cooptação de identidades.

Aliás… identidade. Uma e única, para evitar entusiasmos criativos, felizmente um pouco mais complicados de eliminar do que um logótipo.

Abro parêntesis para assinalar que a explicação para o regresso ao passado, no que se refere à imagem utilizada pelo Governo na comunicação institucional, assenta numa mentira: a de que a mudança visual representava um atentado contra “referências históricas e identitárias”.

Tal como nenhuma referência nacional foi atacada com a actualização da identidade visual do Governo, ninguém está a ser atacado pela “ideologia do género”, o casamento entre pessoas do mesmo sexo ou o aborto, ao contrário do que se defende no livro Identidade e Família, apresentado na passada segunda-feira pelo ex-primeiro-ministro Pedro Passos Coelho.

Em vez disso, demasiadas mulheres continuam a enfrentar barreiras no acesso à interrupção voluntária da gravidez, a violência contra pessoas LGBTQIA+ continua a matar.

Os exemplos do tanto que temos para fazer em defesa da igualdade demonstram que não há tempo a perder com bichos-papões. Nem tão-pouco com livros que reeditam propostas de sociedade que se traduzem em retrocessos democráticos.

Mas é nestas armadilhas da direita e extrema-direita que a única política que importa - aquela que pretende resolver os problemas das pessoas - vai definhando.

E contra mim escrevo: enquanto andarmos entretidos com petições sobre logótipos, e análises de livros em que conquistas de Direitos Humanos são apresentadas como “adversários da família”, as nossas vidas vão continuar à margem. Mas de que forma podemos recentrar a discussão política em nós? Importa continuar a lutar por respostas, com a certeza de que o caminho se faz sem Passos de atraso. Nem ideologias de mentira. 


Escreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfico.

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