Para lá dos algoritmos

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O impacto público da notável minissérie britânica Adolescência (Netflix), criada por Jack Thorne e Stephen Graham, com realização de Philip Barantini, permite relembrar um dado que, há várias décadas, alguma crítica de televisão e cinema não tem desistido de sublinhar, quase sempre encontrando a resistência de todos aqueles (produtores e programadores, sobretudo) que se empenham em demonizar qualquer trabalho de ficção que, segundo eles, tenha alguma conotação “intelectual”. A saber: o tratamento de histórias graves, integrando ideias e factos infinitamente complexos, não é, nunca foi, um fator automático de afastamento dos espectadores - lembremos que estamos perante a personagem de Jamie (Owen Cooper), um jovem de 13 anos acusado de ter matado uma colega de escola, num processo que envolve profundas e muito perturbantes questões de natureza sexual.

Em qualquer caso, importa não atrair outro equívoco. As grandes audiências televisivas, tal como as grandes receitas nas salas de cinema, não são a prova de nenhum tipo de “qualidade”. Seria necessário um enorme cinismo argumentativo (que, sintomaticamente, nunca ninguém se atreveu a consumar) para demonstrar que os números de espectadores do Big Brother televisivo ou, em boa verdade, das muitas variações da chamada Reality TV, transformam tais emissões num prodígio de humanismo e inteligência humanista.

Owen Cooper em 'Adolescência': “É preciso uma aldeia para criar uma criança.”
Owen Cooper em 'Adolescência': “É preciso uma aldeia para criar uma criança.” FOTO: D.R. / Netflix

Aliás, como contraponto, o mesmo se dirá de qualquer filme ou programa televisivo sem qualquer sucesso estatístico - pensar as narrativas (audiovisuais, neste caso) não é um prolongamento do trabalho dos que têm por missão contabilizar o dinheiro ganho ou perdido com os seus produtos.

Não esqueçamos, por isso, a questão comunicacional que, implicitamente, esta série coloca - aliás, recoloca, já que esse tem sido também um tema recorrente de algum trabalho crítico (no caso português, com particular significado desde o aparecimento dos canais privados, há mais de 30 anos). De facto, estamos longe das imagens dominantes dos adolescentes, algures entre o dramatismo pueril de Morangos com Açúcar e o ridículo caricatural de programas “juvenis” direta ou indiretamente marcados pela decomposição estrutural da MTV (na origem, um espaço de fascinante dinâmica cultural).

Tais fenómenos televisivos têm um poder de formatação de sensibilidades e pensamentos que quase ninguém discute (a começar pela classe política). Daí que, paradoxalmente, Adolescência atraia também o esquematismo de alguns discursos profiláticos: estaríamos perante um “alerta” para a necessidade de incrementar a vigilância dos desvios dramáticos, eventualmente violentos, da sexualidade juvenil...

Na verdade, semelhante ponto de vista assemelha-se quase sempre ao daquelas almas bem intencionadas que escrevem relatórios e promovem sessões para proclamar que as formas de violência nos estádios de futebol serão resolvidas com mais sofisticados detetores de metais...

"A personagem de Jamie não é um 'símbolo' global do que quer que seja. A violência que transporta, indissociável do sofrimento que o assombra, exige mais do que uma postura de tribunal televisivo (...)"

Stephen Graham, coautor da série e intérprete de Eddie (o pai de Jamie), tem tido o cuidado de chamar a atenção para simplificações desse teor. Numa breve, mas esclarecedora, conversa com Jimmy Fallon (The Tonight Show), ele assim o disse: “Rapidamente percebemos que não queríamos que fosse uma história de ‘quem é o culpado’. Queríamos que fosse mais um ‘porquê’ - por que é que ele o fez? (...) Há um ditado muito bonito que diz que é preciso uma aldeia para criar uma criança. Daí o meu pensamento: e se todos forem responsáveis? Ou seja: o sistema educativo, a educação dada pelos pais, a comunidade, o governo...” Ou ainda, lembra Graham, aquilo que não fez parte da educação da sua geração. A saber: as redes sociais.

A personagem de Jamie não é, por isso, um “símbolo” global do que quer que seja. A violência que transporta, indissociável do sofrimento que o assombra, exige mais do que uma postura de tribunal televisivo - exige, sobretudo, algo bem diferente. “Somos todos responsáveis”, acrescenta Graham, “e talvez fosse bom conversarmos sobre isso”.

Eis uma lição rudimentar: neste mundo saturado de circuitos de mensagens e algoritmos deterministas, a comunicação é coisa rara. Por isso, a história de Jamie tem tanto de assustador como de comovente.

Jornalista

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