Parábola do náufrago que confiou
Restos simbólicos dum náufrago esquecido regressaram neste domingo à sua terra natal. Pouco mais do que uma amostra da terra que o acolheu e uma certidão de óbito, já que houve de permeio um bombardeamento, uma epidemia, uma vala comum e outras vicissitudes longas de narrar.
O navio de guerra que o trouxe dum porto do Pacífico para a Europa, depois de uma acidentada e improvável viagem, veio embater num rochedo, junto a Peniche. Erro de navegação, excesso de carga e navio em mau estado foram, ao tempo, causas apontadas. Uma grande parte dos que nele seguiam morreu no naufrágio (oficialmente 128). Fernando, identificado como “réu”, com alta probabilidade viajava acorrentado, como numa das suas cartas sugere, e não sabia nadar – mas conseguiu salvar-se. Passo de vez em quando perto e avisto o local do naufrágio e do “miraculoso” salvamento.
A tragédia do San Pedro de Alcantara deu-se, não tão longe assim, em 1786 – já uma década depois da declaração da independência dos Estados Unidos. Fernando, com 17 anos na altura do naufrágio, assistira 4 anos antes ao suplício, execução e esquartejamento do pai, e também da mãe e do irmão mais velho, na praça central de Cuzco, no Peru. A idade fê-lo escapar então à execução, tendo sido inicialmente condenado ao degredo perpétuo em África, destino depois substituído por Espanha. Era o filho mais novo de Josef Gabriel Tupac Amaro, o chefe da “Grande Rebelião” que abalara a Ibero-América colonial, um bom par de anos antes da história de Tiradentes no Brasil (que, como é sabido, também acabaria executado e esquartejado, com pormenores similares).
Ao contrário de outros presos que o acompanhavam, Fernando conseguiu escapar-se e, depois dos anos que já levava de cativeiro, por “milagre da omnipotência” teve “muitos dias de liberdade” em Portugal, “oferecendo-lhe a sorte um asilo de que poderia muito bem gozar” – como dirá em carta ao monarca,de 25/2/1788. Ao fim deles, decidiu apresentar-se. Não podemos saber o que motivou essa decisão nem como foram esses dias. Na sua correspondência, sem resposta, acentua, desde o primeiro momento, que “por si mismo se hizo presente bajo la entera confianza de su inocencia y en la bondad piadosa de Vuestra Majestad” (carta de 7/9/1787). As cartas foram localizadas no Archivo de Indias de Sevilha e recentemente publicadas no livro Las cartas de Fernando Tupac Amaru y otros documentos, 1782-1798, Lima, 2025.O tópico em que nelas insiste é a sua inocência. Sabe bem que está preso por ser filho de quem é (a lenda retem mesmo que teria sido castrado para que não sobrasse descendência do pai). De carta para carta,a vulta a ideia de que “confiou” e de que foi por escolha própria que ali está, na convicção de que será inocentado.
Após a apresentação, Fernando é levado, em fragata espanhola, de Lisboa para Cadis, onde continuará detido, privado de vestuário e em condições de grande insalubridade. Daí seguiria para Madrid, onde, após múltiplas vicissitudes, morreria, indigente, aos 30 anos, sem nunca ter sido restituído à liberdade. Como causa da morte, um médico indicou “melancolia hipocondríaca”.
Em verdade, não será possível reduzir a história do náufrago que confiou à dimensão de uma parábola. O que aconteceu não poderá ser contado como se não tivesse acontecido.