Os ‘rankings’ e o quotidiano da transformação digital da administração pública

Publicado a

Portugal aparece em 2025 como um dos protagonistas europeus na transformação digital da administração pública. O recém publicado e-Government Benchmark, que mede anualmente o desempenho dos serviços públicos online nos Estados membros da União Europeia, coloca o país com uma pontuação global de 82 pontos, significativamente acima da média europeia de 74,5.

Portugal destaca-se em áreas como a disponibilidade online dos serviços, que ultrapassa os 97 pontos e mostra resultados quase perfeitos em domínios como a saúde, a mobilidade, a justiça e a educação, no que diz respeito à oferta digital. Esta performance coloca o país entre os que mais avançaram na digitalização da administração pública. No entanto, há uma distância gritante entre este retrato internacional e a experiência vivida pelos cidadãos no dia a dia.

Enquanto os relatórios elogiam o progresso estrutural, os portugueses demonstram uma perceção muito menos entusiasta. Inquéritos recentes, como o Trust Survey da OCDE, revelam que apenas 43% dos cidadãos estão satisfeitos com os serviços públicos digitais, muito abaixo da média dos países da organização.

Em áreas críticas como a saúde ou os serviços administrativos, o descontentamento é ainda mais pronunciado. A sensação dominante é a de que, apesar da existência formal dos serviços online, a sua utilização continua envolta em complexidade, falhas técnicas e obstáculos inesperados. A promessa de simplificação digital, tantas vezes proclamada, não se materializa de forma uniforme na prática quotidiana.

Este desfasamento entre a medição institucional e a vivência social levanta dúvidas sobre o que realmente significa ter uma administração digitalizada, pois ter serviços disponíveis online não significa que sejam eficazes. Muitos cidadãos que tentam interagir com portais do Estado reportam dificuldades em encontrar informação clara, problemas de autenticação, formulários confusos, ausência de apoio humano em tempo útil e uma sensação de desamparo perante falhas do sistema. O efeito acumulado destas experiências mina a confiança no digital e reforça a ideia de que, por trás dos avanços técnicos, persiste uma cultura burocrática pouco amiga do utilizador.

Apesar de campanhas de literacia digital e do investimento em conectividade, uma parte considerável da população, como idosos, imigrantes, cidadãos com baixa escolaridade ou residentes em zonas rurais, continua à margem da transformação digital. Para estes cidadãos, a migração para os serviços online é frequentemente percebida como uma barreira adicional e não como uma solução. O esforço de inclusão, embora presente em alguns discursos políticos, ainda não produz resultados palpáveis ao nível da equidade no acesso.

Há também um desequilíbrio entre os avanços na digitalização voltados para as empresas, que beneficiam de sistemas mais integrados e intuitivos e os serviços destinados ao cidadão comum, onde a experiência é mais fragmentada e por vezes frustrante. Esta assimetria reflete prioridades políticas e orçamentais, mas também uma lógica de desenvolvimento tecnológico que ainda não adotou plenamente a centralidade do cidadão enquanto utilizador final.

Não basta digitalizar processos, é necessário redesenhá-los com base na experiência real das pessoas. A transformação digital só será completa quando for percebida pelos cidadãos como um ganho concreto nas suas vidas, com menos tempo perdido, menos confusão, mais autonomia e mais confiança. Até lá, Portugal continuará a ocupar lugares cimeiros nos relatórios internacionais, mas a carregar o paradoxo de ser um campeão europeu do digital, onde demasiadas pessoas ainda se sentem excluídas da promessa de uma administração pública simples, eficaz e ao alcance de todos.

Especialista em governação eletrónica

Diário de Notícias
www.dn.pt